Publicado originalmente no site do PSOL
Foi há cem anos. Já se disse que o silêncio é a maior das represálias. O aniversário deve ocorrer sem maior repercussão. No dia 15 de Janeiro de 1919, no calor da crise revolucionária que permanecia aberta depois da revolução de novembro de 1918 que derrubou o Kaiser, Rosa Luxemburgo foi assassinada, ao lado de Karl Liebknecht. A reabilitação teórica e política de Rosa está ainda por ser feita diante dos olhos da nova geração. Mas enquanto existir uma esquerda que tenha paixão revolucionária Rosa Luxemburgo estará viva.
Desde o 9 de Janeiro, Berlim era uma cidade em estado de sítio. Rosa e Liebknecht sabiam que estavam encurralados, e que o cerco se apertava. Há vários dias viviam em permanente mudança de endereços. Até que a delação levou as milícias paramilitares ao seu esconderijo.
O perigo de um confronto mais sério, e até de guerra civil, tinha feito os trabalhadores recuarem, inseguros diante da divisão irreconciliável dos partidos que reconheciam ainda como os seus. O governo Ebert/Sheidemann (uma coalizão do SPD e do USPD, os dois partidos operários mais influentes, conhecidos como majoritários e independentes, levados ao poder pelo “fevereiro” alemão que derrubou a monarquia), estava inflexível na determinação de destruir a dualidade de poderes que, sobretudo em Berlim, ameaçava a estabilidade do regime, e prenunciava uma nova vaga revolucionária. O perigo de um Outubro alemão, verdadeiro ou ilusório, tinha estado no ar.
Era preciso agir, e agir rápido: daí que a decisão do governo, de retomar o controle da polícia de Berlim, a qualquer custo, fosse irredutível. Diante da reação enérgica dos setores mais avançados da classe operária, em defesa dos Conselhos de trabalhadores e soldados, o Governo não hesitou em tomar as medidas mais brutais, o cerco militar da cidade, reveladoras da sua decisão de não hesitar, e ir até ao derramamento massivo de sangue, se necessário.
Já os setores de vanguarda do proletariado que tinham ensaiado o seu “junho de 1848”, recuavam, precipitada e abruptamente, em debandada. O teste de força fora feito e o seu resultado era desolador. A maioria da classe trabalhadora voltou para as fábricas, e se entrincheirou, intimidada, consciente que não seria possível manter a unidade do movimento sob a bandeira da greve geral até a derrubada do Governo.
Nesse ínterim, a repressão contra os spartakistas se abatia de forma impiedosa. O cerco se apertava. Refugiados, nos dias 12 e 13, em uma residência no bairro operário de Neukölin, Rosa e Liebknecht mudaram-se, no 14, para um apartamento “respeitável” de um distrito de classe média em Wilmersdorf. Suas cabeças estavam oficiosamente a prêmio, com uma substantiva recompensa oferecida por empresários de extrema direita, provavelmente com a anuência de Scheidemann. Foram presos às nove horas da noite, ainda na presença de Pieck, um dirigente do comitê central, que tinha acabado de lhes trazer documentos pessoais falsos, para facilitar a saída de Berlim.
Como os Freikorps os encontraram nunca se soube. Foi, provavelmente, casual. Talvez algum vizinho a tenha identificado pela famosa deficiência na perna. Foram levados até o Hotel Eden, onde estava instalado, provisoriamente, o quartel general de uma das divisões para-militares na parte central de Berlim. Sabiam que não seria uma prisão como outras, e que seriam severa e brutalmente interrogados. Mas, desta vez, seus destinos já estavam traçados. Primeiro Liebknecht e depois Rosa foram duramente atingidos por coronhadas na cabeça e, depois, levados para fora do Hotel, colocados dentro de um carro e, em seguida, fuzilados, à queima roupa: Liebknechet arrastado para fora do carro para simular uma fuga, foi baleado pelas costas. Rosa recebeu o tiro na nuca, ali mesmo. O corpo de Luxemburgo foi lançado nas águas do canal Landwehr, de onde foi resgatado somente em Março. Ali foi colocada uma placa, ao lado de uma das pontes, para honrar a sua memória. Rosa, a alemã, a judia-polonesa, a internacionalista, a vermelha, morreu na Berlim que tanto amou, assassinada pela fúria fascista que, em 1933, chegaria ao poder, para mergulhar a Europa no maior genocídio da história.
A mão que aperta o gatilho nem sempre é a mesma mão que aponta a arma
Não restam dúvidas, se é que existiram, sobre o balanço histórico da cumplicidade do governo do SPD, o primeiro da República de Weimar, pelo assassinato de Rosa e Liebknechet. Sabemos, hoje, que a ordem de execução não partiu do Governo. Mas, também sabemos, que a perseguição que cercava os revolucionários spartakistas foi incentivada por Ebert e Scheidemann: Noske, e os Freikorps sob o seu comando, de onde surgiria, nos anos seguintes, uma boa parte do material humano das milícias nazistas, eram um ponto de apoio vital do governo, que duvidava da disciplina da maioria das tropas militares.
O assassinato de Rosa teve para o marxismo revolucionário na Alemanha, o efeito devastador de uma ruptura dos vínculos entre duas gerações. A experiência política que estava resumida nas pessoas de Rosa, de Liebknechet e de Jogiches, o primeiro companheiro de Rosa, se perdeu. Ninguém menos do que Hannah Arendt, denuncia, sem meias palavras, fundamentando-se na pesquisa de Nettl, a criminosa atitude dos socialistas no poder.[i]
O Estado alemão-ocidental, ironia da História, assumiu décadas mais tarde, durante a guerra fria, à sua maneira, a responsabilidade pelo assassinato, apresentando-a nos termos de “uma execução de acordo com as condições de lei marcial”. Fez o que Weimar não podia fazer: a justificação política do crime. A comparação inescapável do escárnio dos assassinos, com o comportamento dos carrascos de Hitler, nos julgamentos dos crimes de Guerra, não é acidental. Sabiam poder contar com a impunidade, tal era o grau de dependência do governo de Ebert/Noske diante do aparato militar.
O confronto prematuro do 5 de Janeiro
Uma contextualização histórica ajudará a compreender porque foi tão necessário o massacre da direção dos spartakistas. As circunstâncias políticas das jornadas de janeiro de 19, o primeiro dos vários “junhos de 1848” ou “julhos de 1917” da revolução alemã são pouco conhecidas, mas merecem atenção, dadas as suas irreparáveis conseqüências. As crises revolucionárias, como sabemos, também têm os seus tempos desiguais, conhecem alternâncias de conjuntura, e sofrem com a flutuação e inversão das relações de forças.
Os acontecimentos que precipitaram as lutas de janeiro começaram de forma quase trivial, como em geral ocorre quando uma revolução está em movimento, e se abre uma situação de crise revolucionária. Tudo se iniciou a partir de um primeiro movimento de contra ofensiva do governo presidido pelo SPD, que considerava intolerável as permanentes manifestações de massas não controladas em Berlim, fator de impulso e ao mesmo tempo, expressão da dualidade de poderes, e resolveu derrubar o chefe de polícia da cidade Emil Eichhorn, membro do USPD, para colocar no lugar alguém mais confiável.
Acusado de incapacidade na preservação da ordem pública, e de permitir que a polícia se transformasse em uma instituição “quase revolucionária”, era vital para o governo a sua queda. Eichhorn desafiou a decisão do governo, se recusando a obedecer às ordens do Ministro do Interior, e afirmando que sua autoridade só podia ser questionada pelo Conselho de operários e soldados. A direção do USPD de Berlim apoiou essa decisão, e resolveu resistir, convocando as massas às ruas, para uma manifestação de protesto. Já os spartakistas apoiaram a ação de rua, mas defendendo a greve geral e, mais importante, que as tropas do exército deveriam ser desarmadas, e os trabalhadores armados.
A posição de Rosa, na direção do KPD, foi a favor, mas ressalvando que a greve deveria ser somente de protesto, para medir forças, e aguardar a reação de Ebert e do Governo e a repercussão junto aos trabalhadores no interior do país. A passeata, no dia 5 de janeiro, foi um sucesso muito além do que todos esperavam e, tudo indica, a direção do KPD recebeu informes que garantiam que, uma parte dos soldados aquartelados em Berlim, estavam do lado dos insurrectos. Mais tarde, isso se demonstrou completamente infundado.
A partir daí, a sorte estava lançada, alea jacta est: reuniões conjuntas dos independentes (USPD) de Berlim, dos comunistas e dos delegados revolucionários constituíram um organismo comum das três frações, com 33 membros e um secretariado de três dirigentes, Liebknecht, Lebedour e Scholze. As atribuições precisas desse organismo permanecem obscuras: seria sua responsabilidade, ou intenção, dirigir o movimento como um protesto, ou tentar a derrubada do governo?
A questão é pertinente, e talvez sem resposta histórica, porque a esquerda socialista alemã, em todas as suas sensibilidades e matizes, inclusive Rosa e a direção spartakista, tinha sido formada em uma cultura de que revoluções “não se fazem”, mas são feitas pelas massas. Já a militância spartakista, em sua maioria, jovens que não viveram o período anterior à guerra, e pouco experientes, tinha inclinações voluntaristas incorrigíveis.
Mas, para os que se tinham formado no velho SPD antes da guerra, a aprendizagem de consciência de classe deveria ser ditada pelo curso das lutas e eventos, e deveria ser o protagonismo dos trabalhadores, deslocando as instituições, quem colocaria objetivamente o poder nas ruas. Essa era a cultura da esquerda socialista na Alemanha: governos caem, não são derrubados; o palácio se rende, não é tomado. A ordem político-social desaba, finalmente, pela força da ação das massas, e o governo, pela perda de legitimidade, cai “de maduro”. Sujeito social e sujeito político, movimento e direção, classe e partido, se confundem. Revolução e insurreição não se separam.
Por isso, é difícil discernir até onde estavam dispostos a ir efetivamente os revolucionários reunidos após o entusiasmo da manifestação do 5 de Janeiro. Setores de vanguarda dos trabalhadores começaram a ocupação de prédios em Berlim, entre eles, os escritórios do Vowärts, o diário do SPD. Esse não foi um pequeno erro: a grande maioria do povo, ainda que desconfiado da decisão de demissão do seu chefe de polícia, ainda reconhecia o SPD como a sua direção e o Vowärts como o seu jornal diário.
Na seqüência, o comitê conjunto da esquerda revolucionária votou, embriagado pela pressão dos acontecimentos, uma efêmera resolução (que não teve maiores desdobramentos) a favor de derrubar o governo. Até Liebknecht votou a favor, contra a posição da direção do seu partido, que sabia ser também a posição de Rosa e Radek, o dirigente russo então colaborando em Berlim. Mas, já no dia 6 de Janeiro, esse Executivo das três correntes estava em dúvida sobre a decisão da véspera e, sem mais delongas, decidiu apoiar a posição da direção do USPD que, entretanto, tinha iniciado negociações com o Governo.
Entre outros fatos, parece ter sido decisiva a neutralidade da Volksmarinedivision, a unidade militar que o Governo tinha tentado dissolver em Dezembro e que, tendo recebido o apoio popular, era a grande esperança de sustentação militar do levante. A direção spartakista, paradoxalmente, condenou ambos os movimentos, tanto o de precipitar a luta pelo poder, quanto a de iniciar negociações… O governo, no ínterim, tinha começado o movimento de tropas de sua confiança para Berlim.
Rosa estava marcada para morrer
A partir daí começou a fuga. Tudo indica que a lógica política sinuosa que guiou a posição dos spartakistas, com o apoio de Rosa teria sido, resumidamente, esta: os comunistas consideravam um erro a decisão dos setores mais avançados da classe de iniciar um movimento imediato pela derrubada do Governo, ou que tensionava o conflito, a tal ponto, que o problema do poder estaria objetivamente colocado. Sem embargo, como essa tinha sido a vontade dos trabalhadores em luta, por disciplina de classe, tinham se unido às massas em levante. Mas, enquanto o KPD se mantinha ao lado dos insurgentes, as outras organizações, as primeiras em colocar objetivos inalcançáveis, bateram em retirada, capitulando em negociações de gabinete, e deixando os trabalhadores à mercê da repressão.
Moral da história: os spartakistas foram os últimos a “aderir” ao levante, mas ele iniciado, os mais reticentes em recuar, e depois os seus mais destacados mártires. Isabel Loureiro resume, assim, o seu balanço de Rosa nos dias decisivos de Janeiro:
”Em suma, nos meses de novembro-janeiro, Rosa permaneceu fiel à sua teoria política: a ação de massas cria as próprias organizações e permite o desenvolvimento da consciência de classe, processo no qual seriam resolvidos os problemas da tomada do poder e do que fazer com ele após a vitória. A ação supre planos, organização, falta de clareza sobre as tarefas a cumprir à medida que os problemas surgem, com eles nascem as respostas desde que haja total liberdade de movimento(…)A tática bolchevique, ao ver no partido um contra-poder de assalto ao poder, é, no que tange a esse problema, mais eficaz. Os autores, independentemente de posição política, de maior ou menor simpatia pelos spartakistas, são unânimes em apontar a falta de organização da Liga Spartakus.” (grifo nosso) [ii] (LOUREIRO, Isabel, Rosa Luxemburgo, os dilemas da ação revolucionária, São Paulo, Editora da Unesp, 1995 p.176/7).
O frágil governo nascido da revolução de novembro que derrubou o Kaiser retomava a iniciativa, apoiado no deslocamento de tropas disciplinadas, vindas do interior do país, e poupadas do acelerado processo de radicalização que o clima de agitação das massas operárias de Berlim provocava. Mas, sua força repousava, também, nas milícias nacionalistas para-militares que agiam impunemente. As “jornadas de Julho” da primeira vaga da revolução alemã, se encerravam com a decapitação do emergente movimento revolucionário no mais decisivo país da Europa. O paralelo histórico parece quase irretocável. A principal liderança spartakista foi vítima de uma repressão implacável que se abateu sobre um levante que não dirigiam, que não tinham convocado, de cujas reivindicações discordavam, mas que se viram obrigados a acompanhar e defender por solidariedade de classe.
Os Spartakistas se viram condenados, politicamente, ao isolamento e abandonados à fúria da mais feroz repressão na seqüência de um levante insurrecional, em tudo semelhante, pela sua precocidade, à precipitação das jornadas de Julho em Petrogrado em Julho de 17, quando, a direção bolchevique esteve seriamente ameaçada (Lênin mergulhou, então, na clandestinidade na Finlândia, e Trotsky, entre outros, é preso, e os locais públicos dos bolcheviques são fechados, enquanto sua imprensa era proibida). Mas, como os relatos históricos confirmam à exaustão, a fragilidade orgânica dos spartakistas, era incomparavelmente maior.
A analogia que sugerimos, pretende realçar que, na seqüência de revoluções democráticas de “tipo fevereiro”, uma metáfora histórica que remete à revolução que derrubou o Czar em 1917, como foi o 9 de novembro na Alemanha, é comum que ocorram situações de intensa agudização na luta de classes. Nessas circunstâncias, acontecem testes de força entre as classes em conflito. Setores mais radicalizados entre os trabalhadores e a juventude, se lançam a um confronto aberto, invariavelmente prematuro, sem considerar que, no conjunto da classe trabalhadora, e ou, no conjunto do país, existam condições efetivas para lutar pelo poder. Ou para preservar o poder se, eventualmente, vitoriosos em um primeiro momento. Foi isso que ocorreu, também em Berlim, nos primeiros dias de Janeiro de 1919.
Este episódio confirma que a contra-revolução aprende as lições dos processos revolucionários precedentes: a liquidação física de Rosa era vital para neutralizar o crescimento da influência dos comunistas, que se beneficiavam diretamente do impressionante prestígio da revolução de Outubro entre os trabalhadores. As pesquisas feitas por Jogiches, nos poucos meses que o separaram da sua morte, igualmente trágica, indicam que a decisão política de eliminar a qualquer custo Luxemburgo, já tinha sido tomada, mesmo antes da manifestação de 5 de Janeiro.
O que justifica que se pergunte as razões pelas quais, ela e Liebknecht, não tenham sido retirados mais cedo do cenário conflagrado de Berlim. A resposta mais plausível é que inexistiam condições organizativas de emergência para fazer o translado. Esse fato, cujas conseqüências políticas para o futuro da revolução alemã se demonstraram irreparáveis (o que remete a uma interessante reflexão sobre o papel do indivíduo na História), pelo peso qualitativo e único da personalidade de Rosa na direção dos Spartakistas, fala por si só, da importância do debate estratégico sobre as relações entre movimento e partido, ação e organização, aos quais Rosa se entregou de corpo e alma, incondicionalmente, em um raro exemplo de coerência entre teoria e prática, durante toda sua vida.
A difamação também tem uma história
A tragédia de sua morte física resume os dilemas de sua heroica vida política: na primeira crise revolucionária de sua vida, em Varsóvia, onde chegou clandestina para viver os últimos meses da vaga de 1905, foi presa, e solta depois do pagamento de um expressivo resgate-fiança; na segunda, foi morta.
Os seus detratores tiveram origem nas mais diferentes tendências do pensamento social e político. Todos os métodos de difamação e calúnia foram usados para diminuí-la. Não surpreende que as classes dominantes, seja na Alemanha ou na Polônia, não tenham o menor interesse em divulgar perante as novas gerações o seu lugar na História, ou a importância dos seus trabalhos. Mas os falsificadores do lugar e obra de Rosa vieram, também, e sobretudo, das tendências da esquerda que, por muitas décadas, detiveram a maior influência entre os trabalhadores e a juventude: a social democracia e o stalinismo.
Os primeiros, em especial os social-democratas de esquerda, se dedicaram a converter Rosa em uma inimiga precoce da revolução de Outubro, quase como uma apóstola de um socialismo democrático e libertário, em irredutível oposição de princípios, ao socialismo tirânico e ditatorial de um Lênin “bárbaro” e “asiático”. Esta ficção deitou raízes profundas. É certo que Rosa manteve duras polêmicas com o bolchevismo durante anos, antes e depois de Outubro. Aliás, da mesma forma que Trotsky, e muitos outros o fizeram, inclusive muitos membros da própria fração bolchevique, como Bukharin, Zinoviev e Kamenev. A esquerda internacionalista pode ter tido outros defeitos, mas nunca foi monolítica. A unanimidade não era perseguida como virtude. Todos se enfrentaram, freqüentemente, com Lenin, sem que essas acesas querelas estratégicas e táticas tivessem envenenado as relações, ou diminuído o enorme respeito, que sempre foi mutuamente preservado.
Uma esquerda, em grande medida, minoritária em seus países, diversa em seu enfoque de interpretação do marxismo, mas solidária, como veio a se demonstrar pelo reencontro histórico na fundação da Terceira. O que merece sempre ser destacado, como um exemplo de esforço de unificação, pouco seguido, posteriormente. Por outro lado, também é certo que Rosa apresentou críticas agudas a algumas decisões dos bolcheviques, como a de dissolução da Assembléia Constituinte.
Mas, talvez, tão ou mais importante, seria destacar que, todas e cada uma dessas decisões, resultaram de intensas polêmicas entre os próprios bolcheviques no poder. Muitas delas públicas ou semi-públicas. Os russos, antes da stalinização, davam uma enorme importância às opiniões dos marxistas de outros países. Por isso, submeteram à apreciação dos delegados aos Quatro Primeiros Congressos da Terceira Internacional, delicadas resoluções, de caráter deliberativo, sobre a política do Estado Soviético. Também, nessa dimensão, a perda de Rosa foi devastadora. Ela resumia uma autoridade que, por sua vez, faltava à maioria dos jovens militante que se viram à frente dos recém formados partidos comunistas. A seguir um extrato de Isabel Loureiro sobre o tema:
“Evitemos cair nas armadilhas social-democráticas e liberais que acabaram por transformá-la em uma autora anti-bolchevique, e até mesmo não marxista. Aliás, uma vertente interpretativa que fcz fortuna no ocidente aponta quase exclusivamente o viés “democrático”, vendo aí a sua contribuição ao legado marxista. Esse aspecto salientado, et pour cause, pela social-democracia, não pode fazer-nos perder de vista que Rosa assim como os bolcheviques, seguiu sempre, sem vacilar, o mesmo fio condutor: a revolução proletária. Mas nem por isso se pode considera-la urna ponta de lança do bolchevismo na Alemanha, como a direita e os comunistas sempre afirmaram. São bem conhecidas as suas críticas a Lênin e, na hora da revolução alemã, ao defender incisivamente os conselhos corno órgãos do novo poder proletário, nem por isso passou a ser favorável à liberdade “dos que pensam da mesma maneira”. Os comentadores não comunistas são unânimes ao reconhecer que Luxemburgo, por sua independência e firmeza diante dos bolcheviques, teria sido a única liderança na Alemanha capaz de opor-se ao atrelamento do KPD a Moscou.”. (grifo nosso) (LOUREIRO, Isabel, Rosa Luxemburgo, os dilemas da ação revolucionária, São Paulo, Editora da Unesp, 1995, p.16).
Rosa acabou sendo, portanto, uma das personalidades mais controvertidas da história do movimento socialista. Em 1923, Ruth Fischer e Arkady Maslow, dirigentes do partido comunista alemão, simpáticos à campanha da “bolchevização” impulsionada por Zinoviev, nos tempos da Troika, iniciaram a campanha contra os desvios, então “direitistas” de Luxemburgo, acusada como herança “sifilítica” do movimento. Seus “erros” foram então severamente analisados, “descobrindo-se”, finalmente (abracadabra!), que eram quase idênticos aos de Trotsky. Do esdrúxulo amálgama, resultou um exorcismo do suposto “espontaneísmo” que, por sua vez, teria raízes no economicismo “catastrofista” de interpretação da “crise final” do capitalismo, contida em sua obra A Acumulação do Capital.
O “catastrofismo economicista”
Este tema do economicismo na obra de Luxemburgo foi sempre muito controverso. A questão teórica, como é óbvio, é decisiva, no seu sentido mais grave: o marxismo não é fatalismo, mas máximo ativismo. Em que medida operam as tendências estritamente econômicas à crise do capitalismo, como um dos fatores decisivos do atual período histórico? Mandel sintetiza, nos termos que poderão ser conferidos a seguir, os limites metodológicos da crítica que, de tão freqüente, se tornou quase um “lugar comum”.
“Es en este contexto que los seguidores de Marx han intentado formular de modo mas rigoroso el probable destino dcl capitalismo. Rosa Luxemburg fue la primera en tratar de elaborar sobre uma base estrictamente científica una teoría del inevitable derrumbe dcl modo capitalista dc producción. En su libro La acumulación del capital intentó demonstrar que la reproducción ampliada. con plena realización del plusvalor producido durante el proceso de producción propiamente dicho, era imposible en el capitalismo ‘puro’. Ese modo de producción, por lo tanto, tenía una tendencia inherente a expandirse en un medio no capitalista, es decir, a devorar grandes áreas de pequeña producción de mercancías que aún sobreviven dentro de la metrópoli capitalista y a expandirse continuamente hacia la periferia no capitalista es decir los paises coloniales y semicoloniaIes. Esa expansion -incluyendo sus formas más radicales, el colonialismo y las destructivas guerras coloniales de la epoca contemporánea; el imperialismo y las guerras imperialistas era indispensable para la supervivencia del sistema(…) Pero Luxcmbourg dejaba claro que, mucho antes dc ese momento final las simples consecuencias de esas formas de expansión cada vez mas violentas, así como las consequencias del gradual encogimiento del medio no capitalista, agudizarían las contradicciones internas del sistema hasta tal punto de explosión, preparando así su derrocamiento revolucionario.” (MANDEL, Ernest, El Capital, Cien Años de Controvérsias en torno a la obra de Karl Marx, México, SigloXXI, 1985, p.233/4)[iii].
À luz da história da segunda metade do século XX, um intervalo expressivo para permitir a avaliação de tendências de longo prazo, não parece razoável alimentar a expectativa de que o desmoronamento do capitalismo possa ocorrer por “morte natural”. Fatores como o atraso da entrada em cena dos trabalhadores em países chaves, e o correspondente atraso na construção de novas direções independentes, deveriam ganhar uma nova dimensão. Seriam essas conclusões incompatíveis com um quadro de análise como o feito por Rosa Luxemburgo? Vejamos, de novo, o argumento de Mandel:
“Algunos críticos han sostenido que, al basar la perspectiva del inevitable derrumbe del modo capitalista de producción exclusivamente en las leyes de movimiento del sistema, Luxemburg retrocedía hacía el ‘economicismo’; que eso era una regresión del modo como los propios Marx y Engels y sus primeros discípulos integraban siempre los movimientos y leyes económicos con la lucha de clases, a fin de llegar a proyecciones y perspectivas históricas generales. Sin embargo esa objeción es injustificada. Si bien es cierto que la historia contemporánea del capitalismo, y en realidad la historia de cualquier modo de producción en cualquier época, no se puede explicar satisfactoriamente sin tratar la lucha de clases (y especialmente su desenlace después de ciertas batallas decisivas) como factor parcialmente autónomo, también es cierto que toda la significación del marxismo desaparece si esa autonomia parcial se transforma en autonomia absoluta. Es justamente el mérito de Rosa Luxernburg, así como de sus varios antagonistas subsiguientes en la ‘polémica del derrumbe”, el haber relacionado los altibajos de la lucha de clases con las leyes internas de movímiento del sistema. Si supusiéramos que o bien la infinita adaptabilidad del sistena capitalista, o la astucia política de la burguesia, o la incapacidad del proletariado de elevar su conciencia a nivel suficiente (por no hablar de la supuesta creciente “integración” de la clase trabajadora a la sociedad burguesa), pueden, a largo plazo y por tiempo indefinido, neutralizar o invertir las leyes internas del movimiento y las contradicciones intrínsecas del sistema, es decir, impedirles afirmarse, entonces la única conclusión cientificamente correcta seria que esas leyes(…) no corresponden a la esencia del sistema: en otras palabras que Marx estaba básicamente equivocado al pensar que había descubierto esa esencia”(grifo nosso) (MANDEL, Ernest, El Capital, Cien Años de Controvérsias en torno a la obra de Karl Marx, México, SigloXXI, 1985, p.233/4).
A análise é irretocável. Sem negar a atualidade das conclusões sobre o movimento de rotação do Capital, reveladas por Marx, seria necessário acrescentar que a esfera de autonomia crescente da política, na definição dos desenlaces da luta de classes, tem permitido o adiamento de novas crises catastróficas, como a de 1929. Não foi outro o lugar das políticas keynesianas anti-cíclicas do pós-guerra e dos pactos sociais nos países centrais. O que não anula, strictu sensu, a defesa metodológica que Mandel faz de Rosa, mas recoloca o problema de forma mais complexa, para além de uma resposta binária, como, “ou ela estava essencialmente certa, ou essencialmente errada”. Porque só conseguiram adiar a crise, aumentando a intensidade dos fatores de crise. Um novo “29”, portanto, é mais do que possível, é em uma perspectiva histórica, a hipótese mais provável.
A acusação final: espontaneísmo e trotskismo “avant la lettre” Os impressionantes ziguezagues dos dez anos seguintes levaram a uma mudança do foco da crítica. Em 1925, depois de mais um giro imposto pelas necessidades da diplomacia de Estado na URSS, aos quais os jovens PC’s estavam disciplinadamente comprometidos, Fischer e Maslow foram expulsos. Os ataques a Rosa, então, inverteram o seu signo. Inventaram, na seqüência, que seus desvios, afinal, não teriam sido direitistas, mas ultra-esquerdistas.
Mas esse não seria o último capítulo da novela. Mais uma espetacular reviravolta ainda estava por se dar. Durante o chamado “Terceiro Período”, que se estendeu entre 1928 e 1935, o PCA se recusou a fazer qualquer gesto de aproximação na ação com o SPD, para resistir ao perigo da chegada ao poder de Hitler. Sob a alegação insólita de que os socialistas seriam sociais-fascistas, isto é, socialistas em palavras, mas quinta coluna do fascismo nos atos (aliás, a mesma espantosa teoria ressuscitada pelo maoísmo nos anos 70, só que a propósito da URSS, e dos partidos pró-moscovitas), Rosa Luxemburgo foi acusada novamente de direitista.
Finalmente, em 1931, o próprio Stalin, já sem intermediários, se uniu à campanha de difamação histórica em um famoso artigo, “Problemas da História do Bolchevismo”, em que reescrevia a história de acordo às suas conveniências, e no qual decretou, contrariando as mais incontroversas evidências, que Rosa seria responsável pelo imprescritível “pecado teórico” da revolução permanente. Não satisfeito com essa ligeireza, acusou Trotsky de ter plagiado Luxemburgo.
Nesse mesmo artigo, mais aberrante ainda, proclamou que Rosa só teria começado a polêmica com o centrismo de Kautsky em 1910. E só depois que Lênin a tivesse convencido. Mas o artigo de Stalin, não obstante a grotesca falsificação, definiu, irremediavelmente, a posição oficial dos partidos comunistas de todo o mundo por várias décadas. Não é difícil compreender a razão de toda essa hostilidade. Assassinada no auge de sua maturidade política, personalidade de grande influência nos círculos revolucionários europeus, mártir da causa do socialismo no país mais decisivo da Europa, Rosa deixou uma obra de indiscutível valor teórico e literário, em que cada página está temperada de ardor e determinação revolucionária.
Seu incondicional internacionalismo, seu apaixonado apelo à ação, sua confiança no protagonismo do proletariado, seu apego irredutível aos mais altos valores da ética militante, seu compromisso inalienável com a verdade e a honestidade, sua preocupação com o sentido político e a dimensão histórica da luta pela liberdade, enfim, a permanente busca de coerência entre suas idéias e sua vida, unidade entre teoria e prática, eram incompatíveis tanto com o pensamento e a prática das castas burocráticas no poder na ex-URSS e na Europa Oriental, quanto com a visão do mundo das burocracias sindicais e políticas social-democratas confortavelmente adaptadas, de corpo e alma, à reconstrução da ordem capitalista.
Viveu no início da época do imperialismo e, rapidamente, compreendeu o papel nefasto do novo militarismo, e a crescente importância dos gastos com armas como mecanismo de regulação do sistema. Por último, mas não menos importante, na hora crucial do Agosto de 1914, quando a precipitação da Primeira Guerra Mundial colocou a hora da verdade para todos os partidos marxistas europeus, dirigiu ao lado de Liebknechet, o pequeno grupo de militantes do SPD que se negaram a apoiar os planos belicistas do seu próprio governo imperialista. O inventário de suas posições, e esta breve exposição de sua trajetória são, portanto, impressionantes.
[i] ARENDT, Hannah, Introduction in Rosa Luxemburgo, NETTL, J.P., New York, Shocken Books, 1969.
[ii] LOUREIRO, Isabel, Rosa Luxemburgo, os dilemas da ação revolucionária, São Paulo, Editora da Unesp, 1995.
[iii] MANDEL, Ernest, El Capital, Cien Años de Controvérsias en torno a la obra de Karl Marx, México, SigloXXI, 1985.
Valerio Arcary é historiador, professor titular aposentado do IFSP e militante do PSOL.