PUBLICADO NO CORREIO DA MANHÃ
POR EMANUEL ALENCAR
Na manhã da segunda-feira (6), a dona de casa Rosângela Borges (52), moradora da Vila Cariti, em Bangu, Zona Oeste do Rio, tomou um susto ao abrir a torneira da cozinha. A água que saía tinha forte cheiro de terra e apresentava sedimentos escuros. Ela imediatamente fez o registro fotográfico e postou nas redes sociais. Casos semelhantes não tardaram a se espalhar por diversos bairros da Zona Oeste e Norte da cidade. Postos de saúde relatariam, horas depois, acréscimo de atendimentos de pessoas com gastroenterite, diarreia e vômito.
Fato inédito há pelo menos 19 anos no Grande Rio, o episódio expôs o desmonte promovido pelo governo Wilson Witzel na companhia de saneamento, sob influência do Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido do governador. Em março de 2019, 54 profissionais de nível superior, sendo 39 engenheiros responsáveis pela qualidade da água distribuída pela Cedae, foram exonerados. Todos com mais de duas décadas na empresa.
O CORREIO DA MANHÃ ouviu cinco profissionais com larga experiência no assunto para traçar o que pode ter ocasionado a terrível falha e o que de fato aconteceu na água que chegou a mais de 20 bairros cariocas na última semana. Todas as fontes apontaram alta possibilidade de imperícia da companhia e consideraram a justificativa oficial insuficiente e simplista.
Em nota oficial divulgada terça-feira (7), a empresa afirma que técnicos da Cedae detectaram a presença da substância Geosmina em amostras de água. “É uma substância orgânica produzida por algas e que não representa nenhum risco à saúde dos consumidores. Desta forma, a água fornecida pode ser consumida pela população”.
NÃO RECOMENDADA
Ex-subsecretária estadual do Ambiente, a engenheira química Elizabeth Lima disse que não recomendaria o uso da água que chegou às torneiras cariocas. Destacou ainda que a geosmina, composto organoclorado decorrente do processo de ruptura de células de cianobactérias do gênero Anabaena, não mudaria o aspecto da água, tampouco seria capaz de causar complicações como dor de barriga. Mas a própria Cedae admitiu que o fenômeno alterou o gosto e o cheiro da água.
– Eu não recomendaria que a população bebesse, não – comentou. – O que causa mais estranheza é que a turbidez na água e a possível presença de geosmina sugerem eventos totalmente distintos. Pode ter acontecido duas coisas diferentes, mas ninguém informou.
A bióloga e pesquisadora Sandra Azevedo, ex-diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ), endossa a sugestão da engenheira:
– A geosmina não provoca qualquer modificação na cor da água, e muito menos turbidez. Isso pode ser decorrente de lavagem de filtros, por exemplo. Desde 2000 nossa legislação estabelece limite máximo de turbidez. É preciso que se avalie com cuidado o que ocorre não só na captação, mas também nas redes de distribuição – alerta a especialista.
Dois profissionais com ampla experiência em tratamento e distribuição de água concordaram que a simples presença de geosmina seria insuficiente para explicar o ocorrido. Eles tampouco descartam um erro operacional da Cedae, seguido de falha na desinfeção da água distribuída por cloro. Neste cenário, chamam a atenção as modificações profundas no staff da companhia de saneamento, que se vê às voltas com movimentos que defendem a privatização de seus ativos.
Consultada pelo CORREIO DA MANHÃ a respeito da questão, a Cedae limitou-se a repetir a nota oficial do dia 7.
DESMONTE
Funcionários com décadas e décadas de experiência deixaram a empresa em 2019. Caso do gerente de Controle de Qualidade, José Roberto Dantas; de Álvaro Henrique Verocai, responsável pela distribuição; de Octavio Legg Neto, chefe de manutenção da ETA Guandu e único engenheiro mecânico da estação; e de Edes Oliveira, diretor de Operação e Grande Produção. Todos tidos como profissionais gabaritados e fundamentais para lidar com momentos de crise.
– São profissionais com anos de experiência e foram trocados por extraquadros. Lamentavelmente o episódio poderia ter sido evitado. Em diversas ocasiões esses engenheiros tiveram que lidar com floração de cianobactérias, fazendo manobras, estratégias, para evitar o pior – diz uma fonte, sob condição de anonimato.
Caso vai parar no Procon
O Procon-RJ anunciou a abertura de investigação para analisar a qualidade da água no estado. O presidente do Procon, Cássio Coelho, determinou prazo de dez dias para que a Cedae explique o episódio.
Caso a culpa da Cedae seja comprovada, a empresa pode ser multada em função da demora na identificação da presença da geosmina na água, bem como não haver alertado a população de forma clara. O valor da multa, informa o órgão, seria estipulado tendo por base o faturamento da companhia de saneamento.
Aos clientes da Cedae que precisram recorrer à compra de água mineral, o Procon recomenda que eles guardem as notas fiscais. Com os comprovantes e outras provas, como laudos médicos e fotos ou vídeos da água turva, é possível obter o ressarcimento.
A equipe de fiscalização estava nesta quarta-feira buscando informações em alguns bairros e nesta quinta-feira irá para outras regiões citadas pelos consumidores. Cássio Coelho informou que diante de uma situação de vulnerabilidade do consumidor, o Procon tomará as providências cabíveis.
Empresas que comercializam água mineral registraram um aumento considerável nas vendas nos últimos dias. O movimento, revelam alguns comerciantes, chegou a quintuplicar.