PUBLICADO NO REPÓRTER BRASIL
POR DANIEL CAMARGOS
Osnir Sanches foi um dos responsáveis por organizar uma milícia armada paga pela União Democrática Ruralista (UDR) no final da década de 1990. Era o “chefe de segurança”, como explica em entrevista à Repórter Brasil, com a função de contratar soldados para um exército clandestino a serviço de fazendeiros do interior do Paraná. A atuação de Sanches o levou a ser um dos quatro condenados pelo assassinato do integrante do MST, Sebastião Camargo, executado em fevereiro de 1998.
Apesar de ter sido sentenciado a 14 anos de prisão, Sanches ficou só um mês atrás das grades, graças a um habeas corpus. Ele nega a sua responsabilidade no crime, mas dá detalhes de como funcionava o treinamento de pistoleiros na organização e acusa a UDR de tê-lo abandonado. “Acabou com a minha vida. Estou pagando por uma coisa que não fiz”, afirmou.
Criada em 1985 para se contrapor ao avanço do MST, a UDR é presidida desde o início dos anos 2000 pelo pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura. Nabhan Garcia comandou a organização até o ano passado, quando se licenciou para ser o responsável pela reforma agrária no Brasil, além da demarcação de terras indígenas e quilombolas. O secretário do governo Bolsonaro chegou a ser investigado pela contratação de pistoleiros nos anos 2000, mas nunca foi indiciado.
Sanches diz não ter conhecido Nabhan Garcia, mas ambos atuaram na mesma época na UDR. Enquanto o pistoleiro organizava milícias armadas na margem paranaense do rio Paranapanema, Nabhan atuava do lado paulista do rio, no Pontal do Paranapanema, em Presidente Prudente.
“Levavam a gente para uma beira de rio, uma fazenda lá no Mato Grosso. A gente ficava lá 8, 10 dias fazendo treinamento, aprendia como manejar uma arma. Eu ia”, recorda Sanches sobre o treinamento organizado pela UDR com os pistoleiros contratados por ele.
Quem financiava a UDR, segundo Sanches, eram os fazendeiros – que recorriam à organização para retirar à força os sem-terras das fazendas ocupadas.
No episódio pelo qual o pistoleiro foi condenado, cerca de 30 homens encapuzados e armados chegaram ao acampamento do MST na fazenda Boa Sorte, em Marilena (PR), e ordenaram que os trabalhadores rurais ficassem deitados no chão, com a cabeça virada para baixo. Sebastião Camargo, de 60 anos, tinha problemas na coluna e não se abaixou. Foi assassinado com um tiro de espingarda calibre 12 na cabeça. Era pai de cinco filhos.
Sanches diz que não tinha a intenção de matar e que não foi ele quem atirou. “Eu peguei o Sebastião, coloquei no carro e levei para o hospital”, recorda. Quatro testemunhas que prestaram depoimento durante a ação penal afirmaram que o responsável pelo disparo que matou Sebastião foi feito pelo então presidente da UDR, Marcos Prochet.
A tese de que Prochet foi o autor dos disparos foi defendida pela acusação e acatada pelos dois júris que condenaram o ex-presidente da UDR pela execução do crime. O primeiro, ocorrido em 2013, o condenou, mas foi anulado em 2014. O segundo júri, de 2016, foi novamente anulado em novembro de 2018.
Já Sanches, chefe dos pistoleiros, é condenado por homicídio qualificado e constituição de empresa de segurança privada utilizada para recrutar pistoleiros e executar despejos ilegais. Em sua defesa, diz que não era o responsável pelo armamento e que sempre dizia a seus homens: “não é para atirar em ninguém, não é para machucar ninguém”. Sanches também não se considera pistoleiro: “Eu era segurança. Esse termo de pistoleiro quem colocou foi o MST”. Os advogados da família do sem-terra executado voltaram a pedir a sua prisão.
Ele está livre há tanto tempo que chegou a se esquecer que é condenado. Quando foi votar, no ano passado, foi impedido, pois de acordo com a legislação a sentença criminal suspende os direitos políticos. “Os mesários falaram para que eu fosse ao cartório. Aí eu lembrei [que era condenado]”, recorda.
Hoje com 63 anos e avô de quatro netos, Sanches chegou a ajuizar uma ação pedindo reconhecimento de vínculo trabalhista com a UDR, onde trabalhou por três anos, entre 1998 e 2001. Não teve sucesso. “O juiz entendeu que não tinha vínculo trabalhista pois a profissão do Osnir não era lícita”, disse o advogado dele na causa, Jurandir Domingos Terra.
Como Sanches, Nabhan Garcia também foi investigado por ter comandado milícias e pistoleiros pela UDR. Ao contrário do pistoleiro, porém, o secretário do governo Bolsonaro nunca foi indiciado.
Nabhan foi acusado de participar da contratação e do treinamento dos pistoleiros que feriram oito sem-terras a bala em 1997, durante ação da UDR para desocupar uma fazenda em Sandovalina (SP). A acusação foi feita pelo fazendeiro Manoel Domingues Paes Neto, em depoimento à Polícia Federal anos depois do episódio. A denúncia chegou até a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Terra (CPMI da Terra).
O relatório final da comissão pedia o indiciamento de Nabhan Garcia e de outros fazendeiros pelos crimes, mas a articulação política de deputados da bancada ruralista como o Alberto Lupion (DEM-PR), que foi relator da CPMI, e Onyx Lorenzoni (DEM-RS), vice-presidente da comissão, conseguiu alterar o relatório final e livrar o atual secretário. Lorenzoni é atualmente ministro da Casa Civil e Lupion assessor especial da mesma pasta no governo Bolsonaro.
“Nem eu e nem a UDR nunca fomos condenados”, afirmou o secretário Nabhan Garcia à Repórter Brasil. Ao ser questionado sobre a morte de Sebastião Camargo e a condenação de Osnir Sanches, que trabalhou para UDR , o secretário ficou irritado e desligou o telefone.
Quando Nabhan Garcia depôs na CPMI da Terra, em 2004, disse que desconhecia qualquer tipo de milícia no Brasil. “Milícia armada, realmente não conheço e não quero conhecer. A única milícia que conheço é o MST”.
A Repórter Brasil entrevistou um dos integrantes do MST que enfrentou as milícias armadas da UDR no Pontal do Paranapanema. Ele pediu para não ser identificado por medo de represálias e afirma que a atuação de Nabhan Garcia começou em 1994, agenciando a contratação de pistoleiros no Mato Grosso para enfrentar o movimento. Nabhan Garcia, segundo o militante do MST, fazia a articulação entre os fazendeiros e promovia leilões de gado para arrecadar dinheiro para a compra de armas.
Os conflitos entre UDR e MST eram intensos no Pontal do Paranapanema quando Nabhan assumiu a presidência da entidade. Em 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu um grupo de integrantes sem-terra em Brasília e, ao final do encontro, posou para fotos com um boné vermelho do movimento.
No mesmo dia, 15 fazendeiros mascarados exibiam suas armas em foto publicada na capa do jornal O Estado de São Paulo. O fazendeiro Paes Neto, que já havia sido preso, afirmou à Polícia Federal que era Nabhan Garcia o quinto mascarado armado na fotografia (da esquerda para direita). A afirmação foi posteriormente negada pelo fazendeiro, durante audiência no Senado.
Passados 16 anos, Nabhan Garcia ostenta um chapéu de fazendeiro ao lado do presidente Jair Bolsonaro na fotografia que usa no perfil de Whatsapp. A proximidade com o chefe e o poder concentrado na Secretaria Especial de Assuntos Fundiários conferem ao ruralista o status de 23° ministro.
A reforma agrária da UDR
Foi na presidência da UDR que o ruralista começou a se aproximar do então deputado Jair Bolsonaro. “Desde quando o Bolsonaro entrou no Congresso eu acompanho ele, que mesmo não sendo produtor rural sempre defendeu o setor produtivo”. Em 2018, Nabhan Garcia se empenhou na campanha do atual presidente, ciceroneando o então candidato por feiras agropecuárias e em encontros com empresários rurais.
Com menos de três meses de governo, o secretário prepara uma série de ações que afetam o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e dispara uma metralhadora de frases de efeito. Já disse em entrevistas que não dorme sem estar armado, que os maiores latifundiários do Brasil são os indígenas e que as escolas do MST são “fabriquinhas” de ditadores.
A condução da reforma agrária no governo Bolsonaro, até o momento, é um espelho do pensamento dos ruralistas. Desde janeiro, nenhum imóvel foi desapropriado e nenhum assentamento foi criado, de acordo com o Incra.
Sob o guarda-chuva de Nabhan Garcia, o Incra passou a ser presidido pelo general João Carlos Jesus Corrêa, que no início do ano suspendeu todos os processos de reforma agrária, conforme revelado pela Repórter Brasil. Diante da repercussão negativa, o governo recuou. Outra medida do instituto foi proibir o diálogo com entidades como o MST. Três dias depois houve novo recuo, após recomendação contrária do Ministério Público Federal que apontou uma série de ilegalidades na medida.
Sob Nabhan, o Incra criou ainda um grupo de trabalho para reduzir cargos e reformular sua estrutura, possivelmente cortando superintendências em regiões com histórico de conflitos no Pará.
Para o membro da coordenação-geral do MST, Alexandre Conceição, o processo de paralisação da reforma agrária começou no governo de Michel Temer com a política de emissão de títulos individuais em detrimento da política de criação de assentamentos.
Agora, sob a gestão de Nabhan Garcia, a avaliação do dirigente do MST é que a política do governo Bolsonaro vai aumentar a paralisação e os conflitos serão inevitáveis no campo. “Somos contra a violência, pois na guerra só morrem os pobres”, afirma. “Você já viu massacre de latifundiário?”.
“A reforma agrária não combina com o pensamento dos membros do governo. Eles entendem que os movimentos sociais são bandidos e agressores”, avalia a ex-ouvidora agrária Nacional, Maria de Oliveira, que mediou conflitos entre Nabhan Garcia e o MST no Pontal do Paranapanema.
‘Favelas rurais’
Nabhan Garcia explicou à Repórter Brasil que o plano do governo para a reforma agrária é transformar assentados em “produtores rurais de fato”. Segundo ele, grande parte dos assentamentos são ociosos, irregulares ou viraram “favelas rurais”.
“A reforma agrária foi feita de forma ideológica e política. Não foram obedecidos critérios para trazer, para os assentamentos, as pessoas que têm perfil de produtor rural”, afirma. Um “pente-fino” está sendo feito, segundo ele, para identificar os assentados que estão produzindo. “Não dá para ficar na ociosidade e transformar a reforma agrária em um comércio de lotes”.
O secretário do governo reafirma que não conversa com o MST. “Não vou aceitar viés ideológico de quem invade propriedade. O Brasil não é uma republiqueta. Quem invade propriedade comete crime”, avalia.
Enquanto Nabhan Garcia implementa a política da UDR em todo o país, Sanches reclama que está abandonado pela instituição, com problemas de saúde e sem dinheiro. Se diz arrependido. “Eu errei”. Quando questionado se voltaria a atuar como pistoleiro, ele diz: “Se me chamarem de novo, eu jamais voltaria a fazer esse tipo de serviço, mas se eu tivesse a oportunidade entraria para o lado do MST”.