Em seu blog Nocaute, Fernando Morais publicou lembranças de quatro décadas de convivência com Fidel. Reproduzimos um trecho:
O tropel dos coturnos pretos sobre o chão de mármore do casarão silencioso me deu a certeza de que era ele quem chegava. Já passava da meia-noite, no final de março de 1975. Eu terminava minha entrevista com o vice-presidente cubano, Carlos Rafael Rodriguez e na manhã seguinte embarcaria de volta ao Brasil, depois de passar quase três meses esquadrinhando Cuba para a reportagem que redundaria no livro “A Ilha”.
Fidel apareceu com o frescor de quem acabara de sair do banho. Puxou uma cadeira, acendeu um charuto e pediu desculpas por não conceder a entrevista que eu pedira. “Ainda é cedo para falar para uma revista brasileira”, desculpou-se. “Mas prometo que a primeira entrevista para o Brasil será dada a você”. Com o gravador desligado, passou os quarenta minutos seguintes me entrevistando sobre as impressões que eu levava de Cuba. “Em muitos anos você é o primeiro brasileiro que aparece aqui que não seja para aprender a dar tiros”, gracejou “e agora quero saber o que achou da nossa ilhota”. Ao final levantou-se, pegou uma garrafa de rum em uma estante, encheu um cálice, tomou a bebida de uma só talagada e sumiu nos corredores semi-iluminados.
Eu só voltaria a vê-lo dois anos depois. Sob um calor infernal, centenas de milhares de pessoas se espremiam na praça da Revolução, em Havana, naquela manhã de 1º de maio de 1977. Um segurança me encaminhou pela arquibancada de madeira e indiciou que eu deveria sentar ao lado de um senhor discreto, de cabelos brancos, óculos de grau e, como a maioria dos presentes, com um chapéu de palha protegendo-o do sol. Era o argentino Ernesto Guevara Lynch, 77 anos, pai do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, morto dez anos antes. A seu lado estava Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro e, em seguida, o Comandante Fidel Castro.
Aos cinquenta anos, Fidel ainda era um homem de aparência sólida e braços longos, de cujas pontas saíam duas mãos ossudas, que gesticulavam sem parar, dirigindo-se ora a Prestes ora a Michael Manley, o primeiro-ministro socialista da Jamaica, sentado à sua direita. Na ponta da barba negra começavam a aparecer os primeiros fios brancos.