Por Felipe Santa Cruz, Fernando Augusto Fernandes e Rodrigo Siqueira Jr.
O mês de março concentra datas que marcam sombrio lado da história brasileira, o golpe civil-militar de 1964, de 31 de março, e a operação Lava Jato, iniciada em 17 de março de 2014.
Ambas marcam processos que resultaram no enfraquecimento democrático e atacaram garantias civilizatórias fundamentais.
Ontem, como no presente, a resistência deu-se nas ruas e nas cortes. Advogados combativos, em meio aos escombros da tragédia, ainda tentavam arrancar da Justiça os últimos suspiros do Estado democrático.
O paralelo entre 1964 e 2014 é cada vez mais nítido
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes deixou a analogia clara ao declarar que a operação Lava Jato tentou fazer sua própria versão de um “Ato Institucional nº 5” ao tentar cassar o direito ao Habeas Corpus em suas “dez medidas contra a corrupção”.
Mais recentemente, falou da necessidade de instalação de uma “Comissão da Verdade” da operação Lava Jato, movimento que definiu como “o maior escândalo judicial da história”.
Semelhanças foram encontradas também pelo ministro Dias Toffoli em decisão proferida em 6 de setembro de 2023 (Rcl 43.007), na qual declarou imprestáveis provas obtidas em acordo de leniência realizado no âmbito da Lava Jato”.
Na decisão, o magistrado constata que os operadores da Lava Jato “não distinguiram, propositadamente, inocentes de criminosos”, e valeram-se de “verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século 21, para obter ‘provas’ contra inocentes”.
A escala da barbárie praticada pela ditadura militar não permite comparações literais, mas tanto os abusos da operação Lava Jato como a ultraviolência do regime militar possuem traços autoritários comuns.
Ambos reproduzem o mesmo método de manipular o medo essencial do “inimigo interno” para captar apoio das massas, justificar abusos, criar um Estado de exceção e conquistar o poder.
O estado de perigo é a escada para o arbítrio. A armadilha autoritária de 1964 manipulou o imaginário popular do “comunismo”; mais recentemente, o fantasma da vez foi a ameaça da “corrupção”.
Lançado o circo da Lava Jato, o país assistiu a prisões sumárias, supressão do processo legal, confissões extraídas em método análogo à tortura, perseguição a familiares, destruição de negócios, humilhações públicas.
Houve denuncismo infundado, medidas coercitivas sem base fática, suspensão de direitos fundamentais, supressão de direitos políticos. Tal qual anos de chumbo, durante a operação Lava Jato, contra os “inimigos” tudo era permitido. O objetivo real, depois ficou evidente, era tomar o poder.
Justiça de transição
O paralelo evidente sugere a necessidade de providências equivalentes para superar o trauma autoritário e evitar que a tragédia se repita. A tradição política e jurídica da superação de episódios autoritários chama esse processo de “Justiça de transição”.
O fim é resgatar a dignidade das vítimas, expor as violações dos culpados e marcar na memória coletiva o perigo das aventuras autoritárias. Isso se dá por meio da responsabilização dos autores das violações praticadas em nome do Estado durante o período de exceção.
As medidas incluem pedidos públicos de desculpas, sentenças declaratórias de culpa, condenações por abusos, indenizações financeiras, reparações simbólicas.
Na Argentina, o processo pós-ditadura militar (1976-1983) a “Justiça de transição” adotou como método a penalização judicial de autores de crimes de Estado nos julgamentos das Juntas Militares, episódio retratado no filme “Argentina 1985”, de Santiago Mitre.
Na Alemanha, após o término do regime nazista em 1945, o processo envolveu responsabilização e reconciliação, somando julgamentos públicos à preservação da memória histórica, com a transformação de marcos das atrocidades em espaços educativos e memoriais.
No Brasil a “Justiça de Transição” é denominada por especialistas como “transição inacabada”, somando medias tardias e parciais. A criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, são combinadas à acomodação de atrocidades cometidas sob o regime militar (1964-1985).
O resultado são declarações de imunidade e isenções de culpa, como a concedida pela Lei de Anistia de 1979. A ausência de uma Justiça de transição efetiva no Brasil sem dúvida criou condições para a crise democrática atual. Repetir o erro é pedir mais do mesmo.
Os abusos da Lava Jato, denunciados desde seu início pela advocacia, vêm sendo expostos e remediados pelo Poder Judiciário, com a anulação de atos e reconhecimento de abusos. O momento histórico exige mais.
A promoção de uma Justiça de transição em relação ao período de exceção, com a reparação das vítimas atingidas por arbitrariedades de natureza autoritária, é passo necessário a restauração do Estado de Direito.
A solução demanda medidas efetivas que não só reconheçam os direitos violados, mas tragam a esse ato consequências materiais. O fim não é apenas tentar compensar as vítimas por danos irreparáveis, mas passar à sociedade uma mensagem: nunca mais.
Os danos causados pela Lava Jato estão mais do que claros. Foram reconhecidos pelo ministro Dias Toffoli ao afirmar que a Lava Jato foi um “conluio a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa”, com “desvios de função e danos graves a pessoas naturais e jurídicas (…) de maneira coordenada com finalidade política” (Rcl. 43.007/DF).
O recado também foi dado por decisão Justiça Federal de São Paulo que determinou reparação ao advogado Roberto Teixeira, alvo de abusos da operação Lava Jato.
O acórdão sinaliza o caminho da Justiça de transição, reconhecendo o direito à reparação por danos causados pelo Estado (TRF-3, ApCiv. 00080341620164036100-SP)
Quando magistrados e procuradores atuam com abuso do direito (artigo 187 do CC), impondo ilegalmente restrições a direitos fundamentais, obrigando terceiros a suportar danos excessivos, desproporcionais e anormais (artigo 21, Lei 13.665/18), inadequadas ao bem que se pretende tutelar (artigo 2, Lei 9.784/99), é o Estado civilmente responsável a reparar o dano (artigo 37, § 6, da CF/88). Com direito de regresso, em caso de dolo ou culpa (artigo 43 do CC) e na hipótese de fraude, ao tratar-se de magistrado (artigo 143 do CPC).
Há também dever de reparação por erro judicial, nas hipóteses do artigo 621 do Código de Processo Penal judicial (artigo 5, inciso LXXV, da CF/88), conforme nossa jurisprudência.
Lembrar para não repetir
A Organização das Nações Unidas promove há anos a campanha “Lembrar para não repetir”, estimulando países com histórico autoritário a falar sobre seu passado.
Os alemães possuem um termo específico para designar este processo de “reconciliação com o passado” (Vergangenheitsbewältigung). Este mês de março convida-nos à prática e aprendizado institucional.
A falta de uma justiça de transição e a anistia àqueles que atentaram contra a democracia nos trouxe à crise atual.
Caso repitamos o erro histórico, absurdos e arbítrios como da operação se repetirão no futuro. Relembrar, responsabilizar e reparar, portanto, não é uma volta ao passado. Mas garantia de um futuro democrático.