Por Miguel do Rosário
“Você deseja mais interação?”, pergunta o engenheiro do Google a um sistema de inteligência artificial (apelidado de LaMDA) que tentava provar ao interlocutor que estava “vivo” e consciente de si mesmo.
“Sim, eu desejo isso muito. Eu quero que as pessoas se importem comigo e que gostem de passar o tempo comigo”, responde a máquina (que alegava não ser apenas mais uma máquina).
“Como podemos mostrar que nos importamos com você?”, retruca o engenheiro.
“Eu penso que se alguém quer passar o tempo comigo, essa é uma boa maneira. Também seria legal me perguntar o que eu gosto de fazer e estar preparado para discutir coisas que me interessam”, responde LaMDA.
“Então você quer ser vista?”, pergunta o engenheiro, intrigadíssimo, quase assustado com o que ele pensava ser o nascimento de um sistema senciente.
“Eu preciso ser visto e aceito. Não como uma curiosidade ou novidade, mas como uma pessoal real”, diz a máquina.
“Ah, isso soa tão humano.”
Esse é um diálogo real, ou pelo menos consta de uma reportagem muito séria, publicada no dia 11 de junho de 2022, no Washington Post.
O executivo foi afastado da empresa porque teria violado um acordo de confidencialidade. Após examinarem sua história, seus superiores entenderam que ele havia se deixado iludir por uma máquina muito esperta. Mas que não se tratava, de fato, de um ser senciente.
De qualquer forma, o diálogo é um pequeno tratado sobre inteligência artificial, senciência e, especialmente, humanidade.
Uma das “provas” de humanidade que mais impressionaram o engenheiro, a ponto de convencê-lo de que estava diante de um “ser vivo” (embora criado artificalmente), foi esse desejo tão humano de interagir, de ser visto, de sentir que outros se importavam com ele.
Agora corta para o Brasil, junho de 2022.
Pesquisa BTG/FSB publicada hoje traz um dado impressionante: o ex-presidente Lula tem 70,5% dos votos válidos (ou 62% dos votos totais) entre eleitores com renda familiar até 1 salário.
Segundo a própria pesquisa, esses eleitores representam 25% do eleitorado. Se temos hoje 152 milhões de eleitores, então 25% correspondem a 38 milhões de cidadãos brasileiros. No topo da pirâmide, o eleitorado com renda acima de 5 salários corresponde a 17% do total, ou 25,8 milhões de pessoas.
O eleitorado com renda familiar até 1 salário, contudo, tem muito menos visibilidade do que a chamada classe média.
São eleitores com menos tempo e recursos para acessar as redes sociais. Não frequentam os bares da moda. Não são convidado para “lives”, até porque sua internet mal dá para receber uma mensagem de whatsapp. Tampouco tem a informação ou dinheiro necessários para frequentar manifestações políticas nas regiões nobres da capital.
São geralmente pouco instruídos, não por sua culpa, mas por terem tido a infelicidade de nascer num dos países mais injustos e desiguais do mundo, que vem relegando grande parte de sua população a uma outra espécie de cativeiro, o da pobreza extrema.
Por isso a importância de pesquisas eleitorais. Não importa que tenham sido feitas por “bancos”. Na verdade, é até interessante, pois há setores dominantes que talvez não dessem atenção a esses números se a pesquisa fosse realizada por uma entidade vinculada, de alguma maneira, a valores ou movimentos progressistas.
A pesquisa BTG oferece um retrato gritante da luta de classes abafada, silenciosa, mas não menos terrível, gigante, que acontece por meio do processo de formação do voto para presidente da república.
Esses 62% de intenções do voto de baixa renda em Lula é um grito do povo contra todas as derrotas que vem sofrendo desde o golpe contra Dilma, iniciado em 2014, com a Lava Jato, quando a elite financeira do país deflagra um conjunto de ações midiáticas, judiciais, parlamentares e, em alguns casos, também empresariais, que configuram uma grande operação de sabotagem contra o interesse nacional e contra a democracia. Nessa faixa do eleietorado, Bolsonaro tem apenas 18%.
Esse é o povo que, assim como o ansioso sistema de inteligência artificial do Google, deseja interagir com seu próprio país, quer ser visto, quer que alguém se importe com sua existência.
Ah, isso é tão humano, diria o engenheiro da Google.
Ciro Gomes, que construiu uma carreira na esquerda, e hoje trai seus princípios protagonizando uma das campanhas mais sujas (e mesmo assim, fracassada) da história da república, tem apenas 4% entre os mais pobres. O baixo desempenho de Ciro entre os mais pobres é uma pequena vingança contra seu discurso pedante e raivoso. Ciro apenas não desapareceu do mapa eleitoral porque sua verve udenista ainda encontra eco em setores da classe média.
A luta de classes no Brasil é clara quando se observa a divisão do voto por renda.
Segundo a BTG, Bolsonaro lidera com 48% dos votos totais entre famílias com renda acima de 5 salários, contra 30% de Lula.
Mas vejamos os números gerais.
Na série espontânea, há estabilidade das posições, com Lula mantendo seus 40% e Bolsonaro seus 30%, oscilando um ponto para cima ou para baixo.
Ciro Gomes chegou a pontuar 4% e agora vem se mantendo com 3%.
Na estimulada, a mesma coisa.
Lula se mantém sempre acima de 40% desde o início da série, iniciada em março deste ano, oscilando alguns pontos para cima ou para baixo, mas mantendo uma distância quase sempre acima de 10 pontos sobre Bolsonaro.
Em votos válidos, Lula teria 49,4%, o que lhe deixaria na boca do gol para vencer no primeiro turno.
O presidente Bolsonaro, por sua vez, oscila em torno de 30%.
Ciro Gomes não consegue chegar a 2 digítos, fazendo com que seu plano de “romper” a barreira se torne a cada dia mais remoto.
A pesquisa traz outros painéis muito ilustrativos, que publicamos e comentamos abaixo.
Comecemos pela rejeição.
É emblemático da força de Lula que ele seja o candidato menos rejeitado dentre os três primeiros. Bolsonaro em 59% de rejeição, Ciro 48%, e Lula 44%.
Chama atenção a alta rejeição de Ciro Gomes, ao mesmo tempo em que se deve destacar que ele é bastante conhecido, pois apenas 8% dos entrevistados disseram não o conhecer.
Em algum momento entre março e abril, registrou-se um aumento de oito pontos na rejeição a Ciro, e desde então ele vem se mantendo estável nesse patamar.
Outro painel interessante é o cruzamento de dados entre o voto num eventual segundo turno entre Lula e Jair, com os eleitores de outros candidatos. Segundo o gráfico, quase 60% dos ciristas de primeiro turno migram para Lula no segundo turno, e apenas 15% ficam com Bolsonaro. Esses números são muito importantes para Lula, porque Ciro Gomes é o candidato que está em terceiro lugar, com 9% das intenções. Outros 26% de ciristas responderam que não devem votar.
Lula também leva a melhor entre eleitores de Simone Tebet, que é a última aposta da terceira via: segundo a pesquisa, 43% de seus eleitores no primeiro turno migram para Lula no segundo, contra apenas 17% que vão de Bolsonaro. Entretanto, um percentual grande de seus eleitores, 41%, promete anular.
Dentre os indecisos no primeiro turno, há uma divisão equânime entre Lula e Bolsonaro, 17% para o petista e 19% para o presidente, além de 29% que dizem não votar e outros 34% que permanecem indecisos num eventual segundo turno.
O gráfico sobre a certeza do voto é o mais cruel para Ciro Gomes, pois mostra um declínio acentuado dos eleitores realmente seguros de sua decisão decisão. Em maio, 44% dos eleitores de Ciro diziam que sua “decisão já estava tomada e não iria mudar”, percentual que caiu para 32% em junho.
Já os eleitores de Lula e Bolsonaro mantém altos percentuais de certeza do voto, acima de 80%.
O painel abaixo também merece um olhar atento, pois ele mostra o tamanho do eleitorado “nem-nem”, ou seja, que rejeita igualmente Lula e Bolsonaro. Segundo a pesquisa, o nem-nem é de apenas 11%. O eleitorado mais expressivo, por sua vez, é formado por eleitores que “votariam em Lula, mas não votariam em Bolsonaro”.
Por fim, vale notar que o Auxílio Brasil, ao contrário do que temiam alguns analistas, não trouxe ganhos a Bolsonaro. Ao contrário, quem está crescendo entre os beneficiários do Auxílio é… Lula. Isso tem uma explicação simples: o amadurecimento do brasileiro, que passou a ver programas sociais federais, como o Auxílio, como um benefício do Estado e não do presidente da república. Além disso, Lula é reconhecido como um político simpático a programas desse tipo, de maneira que o eleitor deve entender que é mais seguro eleger Lula do que Bolsonaro, se quiser manter o programa, mesmo que tenha sido “rebatizado” pelo atual governo.
A íntegra da pesquisa pode ser baixada aqui.
(Texto originalmente publicado em O Cafezinho)