Eu. Sei lá. Naqueles dias. Penso em mim mesmo lá para trás nas terras remotas e geladas do nunca mais, nunca mais, nunca mais, como escreveu Rubem Braga. A imensa dor das coisas que passaram. Camões.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Eu acreditava. Olha a minha foto. Meus olhos castanhos, quase alcançados pelos cabelos loiros. Os olhos castanhos e grandes daquele loirinho. Eles eram olhos de Natasha. A Natasha de Tolstoi e de Guerra e Paz. Ninguém lê mais Guerra e Paz, não é? Mas Natasha. Talvez você queira saber por que a citei. Um trecho de Guerra e Paz. Pedro reencontra Natasha depois de alguns anos. Deus, como ele a tinha amado naquela Rússia sitiada pelas tropas napoleônicas e tão bem descrita por Tolstoi. Pedro a perde e depois a reencontra, mas demora para reconhecê-la, não porque ela estivesse mudada, ou porque era um lugar improvável para uma mulher pura como tinha sido Natasha. Ela tinha perdido o brilho dos olhos. Natasha não tinha mais os olhos de Natasha.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Eu tinha olhos de Natasha. Olha. Aquela foto. O loirinho voltando do futebol. A sacola na mão esquerda. A camisa de mangas curtas aberta. Sorrindo para a câmara de não sei quem. Uma foto em branco e preto. Minha mãe amava aquela foto, pelo filho feliz e por ela mesma, imagino. Minha mãe devia regressar no tempo ao ver aquela foto do menino futebolista. O futebol. Amei o futebol mais que a mim mesmo, e com uma bola vivi os dias mais felizes da minha vida, e ter deixado de jogar tão garoto por uma contusão cruel como um cossaco russo, ah, sei lá, eu podia ter passado sem essa. Olha. Aquela foto. Depois do jogo. Eu era um menino que sonhava. Olhos de Natasha. Meus ombros eram muito estreitos para carregar a dor. Logo eu jogaria meu último jogo. O último. Mas ali. Naquela foto. Eu era feliz para sempre. Rio comigo mesmo agora. Minha perna esquerda, a única que eu sabia usar no futebol, não me traiu. Quem me tirou dos campos dos sonhos foi a perna direita.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. A Cristina. Loira, delicada, rosto redondo de alemã saudável. Camisa branca, saia azul de estudante. Nós estudávamos juntos, e na classe A. Minha escola. Eu era fascinado por resolver problemas de matemática. Achar o xis. Como achei o xis. Mas jamais encontrei o coração da Cristina. O diretor dividia as salas de acordo com o desempenho dos alunos. A Cristina e eu. Nós éramos, naqueles anos em que estudamos juntos, da classe A. Todos a amávamos. Ela era a menina mais linda da escola. E parecia não saber disso. A Cristina. Ela não vai ler o que estou escrevendo. E talvez seja bom. Uma viagem rumo aos dias em que foi rainha pode doer nela, e eu não gostaria de magoá-la.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Meu pai. Meu pai já era a figura dominante na minha vida. Papai. Meu pai me inspirou na vida, na doença e na morte. A força invencível na adversidade. Marco Aurélio, o rei-filósofo, escreveu isso sobre um de seus mestres em suas Meditações. Meu pai. Papai foi grande para mim na presença, e ainda maior na ausência. Disse a você o quanto o amava, pai? Estou ouvindo agora uma de minhas músicas favoritas. ‘Not Going Home Anymore’. Nunca mais voltar para casa. Meu pai. Papai. Um dia ele nunca mais voltou para casa. E eu de certa forma também não. Olha. Aquela foto. Aquele menino feliz. Ele não voltou para casa quando seu pai morreu. Um perpétuo estado de desamparo, solidão e orfandade. Mas o menino. Ele foi adiante mesmo caído, combateu o combate ainda que de joelhos. Em nome do pai. |