Por Fernando Augusto Fernandes
Nos últimos dias, mais um escândalo decorrente de atitudes primárias atingiu o ex-presidente da República Jair Bolsonaro. O caso merece uma análise explicativa das ações e consequências e, em especial, da curiosa recompra de alguns itens no exterior para entrega ao Tribunal de Contas da União (TCU).
Primeiramente, consumado o crime, a devolução de bens ao lesado soluciona a questão? Tecnicamente extingue a punibilidade?
Poucos crimes preveem que, após consumada a devolução de valores, extingue-se a punibilidade. O crime tributário prevê que o sonegador, ressarcindo o fisco (artigo 34 da Lei 9.249/1995 e artigo 9º da Lei 10.684/2003), livra-se da punição.
Nos demais crimes consumados sem violência ou grave ameaça, há a possibilidade de mera redução da pena quando o agente tenha “reparado o dano ou restituída a coisa”. Tal redução está prevista no artigo 16 do Código Penal como “Arrependimento Posterior”.
Não é possível alegar desconhecimento da lei ou erro de tipo penal. O artigo 21 do Código Penal, que prevê o “erro sobre a ilicitude do fato”, afirma que “o desconhecimento da lei é inescusável”. Mais uma vez, no caso, não isenta de pena, mas pode simplesmente diminuí-la de “um sexto a um terço”.
Ou seja, diante da decisão do TCU de 2016, anterior aos fatos, dizer que não se conhecia que os bens eram da União não auxilia Bolsonaro e os envolvidos a se livrarem do problema.
Observa-se, ainda, em especial, que a Lei 8.394/91, que regula o acervo presidencial, quando trata do que integra o patrimônio pessoal do presidente, declara os bens como de interesse público, permitindo que sejam deixados de herança, ou que haja doação ou venda. No entanto, cria restrições no artigo 3º ao afirmar que: ” I – em caso de venda, a União terá direito de preferência; e II – não poderão ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União”. No caso de extinção do acervo prevista no artigo 22 do Código Civil, “os documentos que o compõem serão transferidos para a guarda da União”.
Portanto, se não existisse a correta interpretação do TCU, até porque o acervo é meramente documental, e as joias pudessem integrar o patrimônio pessoal, a lei declara o interesse da União — e elas jamais poderiam ser vendidas sem previa ciência e preferência da União.
Mas não é só. As joias foram levadas para o exterior no avião presidencial. Levar valores ou bens de tão alta valia para o exterior sem a comunicação aos órgãos competentes constitui evasão de divisa (artigo 22 da Lei 7.492/86).
Peculato é “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. A pena é dois a 12 anos.
Nesse caso, quando o crime do partícipe é culposo há a possibilidade da extinção de punibilidade com o ressarcimento se antes da sentença. Note-se que se trata de culpa, ou seja, falta de dolo do partícipe, não da tese de desconhecimento da lei, já explicada acima, que gera mera diminuição de pena.
Mas Bolsonaro, de posse dos bens da União, os levou para fora do país e os vendeu sem a comunicação devida (exigida no caso de bem privado de interesse da União), portanto cometeu o crime de peculato.
A recompra decorreu de uma tentativa de ressarcir a União ou de ocultar o fato? Inicialmente, os e-mails sobre a existência de pedras preciosas ainda não localizadas e não registradas, e não entregues posteriormente ao TCU, demonstram que o objetivo não seria o ressarcimento, mas a ocultação dos fatos.
Assim, a recompra do bem proveniente do crime não desfaz o ato anterior, porém acaba inserida na lavagem do dinheiro. Isso porque se adquiriu o bem, já produto do peculato, com o objetivo de ocultar o crime.
A Lei 9.613/98, que tipifica a lavagem de dinheiro, criminaliza o ato de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, conforme previsto em seu artigo 1º. Também criminaliza os atos de quem “os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere”; e de igual forma quem os “importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros”.
A recompra do bem proveniente do peculato não desfez a venda do bem público, mas gerou novo crime de lavagem que foi novamente cometida quando o bem ingressou de forma irregular no território nacional.
Há detalhes importantes nesses fatos. O advogado exerce um múnus público e possui imunidade nos seus atos. Contudo, tem limites. A compra em dinheiro levanta a dúvida de como a soma maior do que o limite de valores que possam embarcar para fora do país sem declaração (U$ 10.000) foi parar no exterior. Afinal, houve nova evasão de divisa? O advogado trouxe o bem proveniente do peculato e ingressou no território nacional sem declarar?
Tais atos extrapolam a imunidade profissional do advogado por não terem sido realizados na forma da lei. Há possível participação do advogado na lavagem de dinheiro decorrente da recompra e importação ilegal do bem, além de possível nova evasão de divisa.
Todos os fatos relatados são evidentemente criminosos e dignos de processo e punição. O máximo que se conseguiria em relação à defesa seria uma diminuição da pena. No entanto, as investigações acabam desenhando que existem outros bens ainda desaparecidos e participação de várias pessoas no cometimento dos crimes, configurando-se uma organização criminosa para realizá-los.
Conclui-se que, em relação à complexidade dos atos, somente um terraplanismo jurídico — termo cunhado pelo jurista Lênio Streck — poderia pensar que a simples recompra e devolução, ou mesmo o argumento de que não se sabia que os bens eram da União, pode solucionar o grave processo penal que se avizinha.
Publicado no ConJur