Publicado na Tierras de América.
A revista La Cárcova News, de uma favela argentina, fez uma entrevista coletiva com o Papa Francisco. As perguntas foram preparadas pelos moradores da favela La Cárcova e encaminhadas, no dia 07 de fevereiro, ao Papa Francisco, por intermédio do Pe. José María Di Paola, mais conhecido como Pe. Pepe.
Você fala muito de periferia. É uma palavra que usa muitas vezes. No que pensa quando fala de periferia? Em nós, nos moradores da favela?
Quando falo de periferia falo de limites.
Normalmente, nós nos movemos em espaços que de alguma maneira controlamos. Esse é o centro. Mas, à medida que vamos saindo do centro, vamos descobrindo mais coisas. E quando olhamos o centro desde essas novas coisas que descobrimos, desde as novas posições, desde essa periferia, vemos que a realidade é diferente. Uma coisa é ver a realidade do centro e outra coisa é vê-la do último lugar aonde vocês chegaram. Um exemplo. A Europa, vista de Madri no século XVI, era uma coisa, mas quando Magalhães chega ao fim do continente americano e olha a Europa, a partir daí entende outra coisa. Vê-se a realidade melhor da periferia do que do centro.
Também a realidade de uma pessoa, das periferias existenciais e inclusive a realidade do pensamento. Pode-se ter um pensamento bem estruturado, mas quando se confronta com alguém que está fora desse pensamento de alguma maneira tem que buscar as razões do seu pensamento, começa a discutir, se enriquece a partir da periferia do pensamento do outro.
Você conhece os nossos problemas. A droga avança e não se detém, entra nas favelas e ataca os nossos jovens. Quem deve nos defender? E nós, como podemos nos defender?
É verdade, ela avança e não se detém. Há países que já são escravos da droga e isso é preocupante. O que mais me preocupa é o triunfalismo dos traficantes. Essa gente já canta vitória, venceram, triunfaram. E isso é uma realidade. Há países ou zonas onde tudo está sob o domínio da droga. Com relação à Argentina, posso dizer apenas o seguinte: há 25 anos era um lugar de passagem da droga, hoje é um lugar de consumo. E não tenho certeza, mas penso que também se fabrica droga na Argentina.
Qual é a coisa mais importante que devemos dar aos nossos filhos?
A pertença, a pertença a um lar. A pertença se dá com amor, com carinho, com tempo, tomando-os pela mão, ouvindo-os, brincando com eles, dando-lhes o que necessitam em cada momento para o seu crescimento. Sobretudo, dando-lhes lugar para que se expressem. Se vocês não brincarem com seus filhos, os estarão privando da dimensão da gratuidade. Se vocês não derem lugar para que eles digam o que sentem e para que possam inclusive discutir com vocês, porque se sentem livres, não os deixarão crescer.
Mas o mais importante é a fé. Fico muito mal quando encontro crianças que não sabem fazer o sinal da cruz. A essas crianças não chegou o mais importante que um pai e uma mãe podem dar: a fé.
Você acredita que sempre existe a possibilidade de uma mudança, tanto em situações difíceis de pessoas que foram muito provadas pela vida, como em situações sociais ou internacionais que são causa de grandes sofrimentos para a população. De onde tira esse otimismo, inclusive quando teria motivos para o desespero?
Qualquer pessoa pode mudar, inclusive as muito provadas. Eu conheço pessoas que não viam nenhum sentido em sua vida, e atualmente estão casadas, têm seu lar. Isto não é otimismo, isto é certeza em duas coisas. Primeiro, no homem, na pessoa. A pessoa é imagem de Deus, e Deus não despreza sua imagem, sempre a resgata de alguma maneira. E segundo, na força do próprio Espírito Santo, que vai mudando a consciência. Não é otimismo, é fé na pessoa, porque é filha de Deus. Deus não abandona os seus filhos. Gosto de repetir a frase que nós, os filhos de Deus, damos um fora a três por quatro, nos equivocamos, pecamos, mas quando pedimos perdão, Ele sempre nos perdoa. Não se cansa de perdoar. Somos nós que, quando achamos que somos importantes, nos cansamos de pedir perdão.
Sua vida foi intensa, rica. Nós também queremos viver uma vida plena, intensa. Como se faz para não viver inutilmente? E como alguém pode saber que não vive inutilmente?
Bom, eu vivi muito inutilmente, eh? Não foi tão intensa e tão rica. Eu sou um pecador como qualquer um. Acontece que, simplesmente, o Senhor me induz a fazer coisas que são vistas, mas quantas vezes há pessoas que não são vistas, e o bem que fazem! A intensidade não é diretamente proporcional ao que se vê. A intensidade se vive por dentro. E se vive alimentando a própria fé. Como? Fazendo obras de fecundidade, obras de amor para o bem das pessoas. Talvez o pior pecado contra o amor seja renegar uma pessoa. Há uma pessoa que o ama, e você renega essa pessoa agindo como se não a conhecesse. Ela o ama e você a renega. Quem mais nos ama é Deus. Renegar Deus é um dos piores pecados que há. São Pedrocometeu esse pecado, renegou Jesus Cristo… e, assim mesmo, o fizeram Papa! Então, o que me resta? Portanto, não… Em frente!
Você está cercado por pessoas que não concordam com você?
Sim, evidentemente.
Como se comporta com elas?
Eu nunca fiquei mal em ouvir as pessoas. Toda vez que as escuto, fico bem. As vezes que não as ouvi me senti mal. Porque, embora não esteja de acordo, sempre, sempre vão dar-lhe algo ou vão colocá-lo em uma situação em que você é convidado a repensar suas coisas. E isso é enriquecedor. É a maneira de se comportar com os que não estão de acordo. Agora, se eu não estou de acordo com alguém e deixo de saudá-lo, fecho-lhe a porta na cara ou não o deixo falar, não lhe pergunto nada, é evidente que anulo a mim mesmo. Esta é a riqueza do diálogo. Dialogando, escutando, se enriquece.
A moda de hoje impele os jovens às relações virtuais. Na favela isso também acontece. Como se pode fazer para que saiam de seu mundo de fantasia e ajudá-los a viver a realidade e as verdadeiras relações?
Eu faria uma distinção entre o mundo da fantasia e as relações virtuais. Às vezes, as relações virtuais não são de fantasia, são concretas, são de coisas reais e muito concretas. Mas, evidentemente, o desejável é a relação não virtual, ou seja, a relação física, afetiva, a relação no tempo e no contato com as pessoas. E creio que o perigo que nós corremos agora é o de ter uma capacidade de informação muito grande, de poder nos mover virtualmente dentro de uma série de coisas que pode nos levar a nos converter em jovens-museu. Um jovem-museu está muito bem informado, mas o que faz com tudo o que tem? A maneira de ser fecundo na vida não passa por acumular informação ou manter somente comunicações virtuais, mas por mudar o concreto da existência. Em última instância, quer dizer amar.
Você pode amar outra pessoa, mas se não lhe der a mão, se não lhe der um abraço, não é amor; se você ama alguém a ponto de se casar com essa pessoa, ou seja, com o desejo de se entregar completamente, e não a abraçar, não lhe der um beijo, não é verdadeiro amor. O amor virtual não existe. Existe a declaração de amor virtual, mas o verdadeiro amor prevê o contato físico, concreto. Vamos ao essencial da vida. E o essencial é isso. Então, não jovens-museu que somente estão informados sobre as coisas virtualmente, mas jovens que sintam e que com suas próprias mãos – aqui está o concreto – levem adiante a sua vida. Gosto de falar das três linguagens: a linguagem da cabeça, a linguagem do coração e a linguagem das mãos. Tem que haver harmonia entre as três. De tal maneira que vocês pensem o que sentem e fazem, sintam o que pensam e fazem, e façam o que sentem e pensam. Isso é o concreto. Ficar somente no plano do virtual é como viver em uma cabeça sem corpo.
Há algo que queira sugerir aos governantes argentinos em um ano eleitoral?
Primeiro, uma plataforma eleitoral clara. Que cada um diga: nós, se formos eleitos, vamos fazer “isto”. Bem concreto. A plataforma eleitoral é muito saudável, e ajuda as pessoas a ver o que cada candidato pensa. Conta-se uma história, acontecida em uma das eleições de muitos anos atrás, protagonizada por alguns jornalistas vivos. Mais ou menos na mesma hora encontraram-se com três candidatos. Não lembro se eram candidatos a deputado ou a prefeito. E perguntaram a cada um deles: o que você pensa sobre tal assunto? Cada qual deu sua própria resposta, e a um deles um jornalista disse: “mas o que você pensa não é a mesma coisa que o partido que você representa pensa. Veja a plataforma eleitoral do seu partido…”. Às vezes, os próprios candidatos não conhecem claramente o programa do partido, bem estudado, dizendo explicitamente: “Caso eu for eleito deputado, prefeito, governador, vou fazer ‘isto’, porque penso que ‘isto’ é o que deve ser feito”.
Segundo, honestidade na apresentação da própria postura. E terceiro – é uma das coisas que temos que conseguir, oxalá, possamos consegui-la –, uma campanha eleitoral de tipo gratuito, não financiada. Porque nos financiamentos das campanhas eleitorais entram muitos interesses que depois ‘cobram a fatura’. Então, deve-se ser independente de qualquer um que possa me financiar uma campanha eleitoral. É um ideal, evidentemente, porque sempre falta dinheiro para confeccionar material de campanha, para a televisão. Mas, em todo o caso, que o financiamento seja público. Deste modo, eu, cidadão, sei que financio este candidato com esta determinada quantia de dinheiro. Que seja tudo limpo e transparente.