Matéria no Valor fala do terceiro livro de memórias de Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França com peso na direita tradicional do país.
O período coberto em ‘O tempo de combates’ é entre 2009 a 2011 e ele dedica elogios ao presidente Lula:
‘Tudo nos diferenciava, a língua, a orientação política, a história pessoal, as referências históricas e de amigáveis’, escreve Sarkozy sobre Lula. ‘No entanto, nos entendemos instantaneamente. Foi imediato. Eu tinha prazer em discutir com ele. Eu gostava de sua maneira de ver as pessoas e as situações. Ele foi mesmo um dos chefes de Estado que quem eu tenho mais simpatia’.
Sarkozy conta que reencontrou Lula depois da prisão do brasileiro, quando este se preparava para se casar de novo. ‘Lula não é um homem que se pode destruir ou reduzir. É uma rocha. Confesso admirar esse homem sem fazer julgamento sobre seus ‘’casos’ (referencia a acusações de corrupção), dos quais ignoro tudo’’, acrescenta. O próprio Sarkozy tem processos a responder. Vai ser julgado em 2025 num caso de ‘pacto de corrupção’ com o então ditador Mouamed Kadafi, que teria ajudado a financiar sua campanha.
O ex-presidente francês diz que sempre teve confiança em Lula. E que, de toda maneira, se tivesse que compará-lo ao ex-presidente Bolsonaro, ‘teria ainda menos dúvida. Eu não teria tido nenhum prazer em trabalhar com esse último’’.
Ao abordar uma visita a Brasília em setembro de 2009, Sarkozy relata uma das cenas mais saborosas do livro. Diz que Lula insistia em convidá-lo para um churrasco, com o presidente brasileiro afirmando que tinha se tornado um especialista na tarefa. Ao chegar no fim da tarde no Palácio da Alvorada, Sarkozy encontrou Lula já em torno de uma churrasqueira bastante ‘imponente e moderna’ com painéis de vidro de cada lado.
‘Lula, querendo fazer bem, tinha sem dúvida colocado carvão demais na churrasqueira’’, conta. ‘Eu notei mo momento em que entrei (no recinto) que o fogo era impressionante. Estávamos sentados há apenas dez minutos quando ouvimos uma violenta explosão que nos assustou e fez aparecer uma quantidade respeitável de militares brasileiros armados que, visivelmente, podem ter pensado em um atentado’’.
Aapós alguns minutos, a causa da barulheira foi descoberta: a famosa churrasqueira tinha explodido com um ruído terrível de vidros quebrados que caíram sobre a carne destinada ao churrasco. O jeito foi mesmo se dirigirem para uma sala anexa para degustar uma moqueca acompanhada de feijão.
Para Sarkozy, o presidente brasileiro ‘manteve suas maneiras e seus gostos simples da época em que era apenas um operário entre outros. Era todo o contrário de um novo-rico’’.
A prioridade de Sarkozy na relação que queria estabelecer com o Brasil na época de Lula focava a indústria de armamentos. ‘Eu transgredi as regras habituais e ignorei a oposição dos Estados Unidos, aceitando ajudar os brasileiros a adquirir submarinos com propulsão nuclear’’, conta ele, observando que a cooperação nada tinha a ver com bomba atômica. Na cooperação com os franceses, o primeiro submarino brasileiro com propulsão nuclear deve ser concluído em 2029.
Ele relata que aproveitou para convencer Lula a comprar aviões de combate Rafale, que há 25 anos não tinha conseguido um único comprador estrangeiro. Lula anunciou negociações para comprar 36 Rafale, o que não tardou a ‘a provocar uma real tensão com os americanos que se bateram até o fim para fazer esse projeto fracassar’’. O Brasil acabou por adquirir aviões de combate Gripen, da Suécia.
Considerado na França provavelmente o mais americano dos presidentes franceses, Sarkozy faz constatações sobre o poder de Washington.
‘Os americanos não aceitam bem a menor recusa de alinhamento sistemático, que é imediatamente percebida como uma traição’, escreve. Esse ex-presidente de uma potência média como a França exemplifica que ‘são os americanos, e somente eles, que fazem a chuva e o bom tempo’ no Fundo Monetário Internacional (FMI), que é central na governança econômica. ‘Nada se decide sem seu acordo antecipado’, escreve.