Identitário não é quem defende pessoa negra no STF, mas quem naturaliza o status quo excludente. Por Jeferson Miola

Atualizado em 17 de setembro de 2023 às 8:12
Sede do STF, em Brasília. (Foto: Reprodução)

Jeferson Miola

É cada vez mais corriqueira a deturpação do conceito de identitário.

Aqueles que defendem a igualdade de representação de mulheres e pessoas negras em todos os espaços da sociedade, sobretudo nos espaços da política e do poder, são rotulados de maneira errada e depreciativa como “identitários”, como se a busca da igualdade fosse um pleito particularista em conflito direto com a perspectiva universal de representação.

Em Emancipação e Diferença, Ernesto Laclau sustenta que “a brecha entre o universal e o particular é irreparável – o que equivale dizer que o universal nada mais é do que um particular que em algum momento se tornou dominante” [página 54].

As relações na sociedade são relações de poder entre diferentes grupos sociais. “Cada grupo é diferente dos demais e constitui em muitos casos essa diferença com base na exclusão e subordinação dos outros grupos”, explica Laclau.

Para o autor argentino, “se a particularidade se afirmar como mera particularidade, numa relação puramente diferencial com as outras, estará sancionando o status quo das relações de poder entre os grupos”.

Foi isso o que aconteceu no apartheid sul-africano, onde a particularíssima “superioridade” da elite branca minoritária foi evocada para subjugar e inferiorizar politicamente a esmagadora maioria negra.

Ilustração: Benett

Essa não é uma discussão meramente teórica, porque os efeitos concretos de regimes segregacionistas são devastadores: negam direitos fundamentais a todos; direitos que deveriam ser universais, como o direito de bem viver, de acesso à educação, à saúde, à vida digna, ao trabalho decente, ao lazer, à cultura, à participação política igualitária etc.

A exclusão de mulheres e negros é uma perversão que carrega muitas outras perversões. Esses segmentos, que são permanentemente bloqueados e sabotados, apesar de majoritários, são rotineiramente interditados para o exercício de postos proeminentes em todas áreas, sob o pretexto cínico e abjeto de que não têm conhecimento, experiência, formação, capacidade e blá blá blá …

Quando a igualdade de direitos é assegurada a todos integrantes da sociedade, a particularidade de raça, gênero ou de qualquer outra identidade se reconhece e, ao mesmo tempo, se dilui no exercício de uma cidadania universal, além de ricamente diversa e plural.

Não é isso, contudo, o que acontece no Brasil, uma nação marcada pelo apartheid racial e pela exclusão das mulheres. As maiorias sociais brasileiras –53% mulheres e 56% de pretos e pardos– são inferiorizadas politicamente, o que é uma mancha racista e misógina vergonhosa.

Esta vergonha estampa a fotografia da Câmara dos Deputados, composta por 91 mulheres, que ocupam apenas 17% das 513 cadeiras; e por 134 pessoas pretas ou pardas [26%], número que pode ser superestimado, considerando que muitos políticos se autodeclaram pardos na eleição por oportunismo e mau-caratismo.

Estudos acadêmicos sustentam que no ritmo de tartaruga do incremento de mulheres eleitas a cada eleição, o país levará mais 120 anos para alcançar a paridade de gênero no Congresso Nacional.

Portanto, é desonesto e ignorante taxar de identitário quem defende a representação universal e igualitária das maiorias –mulheres e pessoas negras– em relação às oligarquias dominantes brancas e masculinas que, apesar de minoritárias, exercem ferreamente o poder.

Identitário, no caso brasileiro, é quem pertence à minoria branca [44%] e masculina [47%] mas, mesmo assim, ao longo de mais de 500 anos continua impondo a supremacia da sua identidade enquanto poder dominante sobre as reais maiorias sociais.

O Brasil é um país feminino e negro. É o território do planeta que abriga a maior população afrodescendente existente fora do continente africano.

Essa é a verdadeira identidade do Brasil, e o traço constitutivo do povo brasileiro. A condição negra e feminina é o critério que confere universalidade à nação brasileira, não o supremacismo excludente e segregacionista.

É impossível pensar um Brasil antirracista, feminista, decolonial e moderno sem se avançar urgentemente na expansão acelerada de mulheres e pessoas negras ocupando postos de comando dos destinos do país.

A defesa, portanto, de que a ministra Rosa Weber seja sucedida por uma mulher, a primeira negra no STF, significa pedir para que o presidente Lula não ceda ao atraso e ao retrocesso. A essas alturas, manter as duas ministras dentre 11 ministros do STF é o mínimo aceitável.

E convenhamos: é difícil crer que dentre as mais de 56 milhões de mulheres negras do Brasil não exista uma única com mais de 35 anos de idade, com notório saber jurídico e com conduta ilibada. Francamente!

Publicado originalmente  no Blog de Jeferson Miola

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