Por Erika Oliveira de Paula, psicóloga graduada pela Universidade Guarulhos e especialista sexologia pela FMABC
Em 2014, quando iniciei meus estudos sobre gênero e sexualidade na pós-graduação da USP, meu primeiro trabalho de pesquisa foi sobre a chamada “cura gay”. Na época, já havia tramitado na Câmara uma tentativa de anulação da Resolução 01/99, que proíbe psicólogos no país de exercerem tal atividade.
Todo o material de pesquisa foi obtido por meio da associação americana PSICO-cristã “LIA” (Amor em Ação), que prometia a reversão da orientação sexual. Meu estudo tinha duas etapas: entender como funcionava essa terapia e avaliar sua eficácia.
A “LIA” conduzia o “processo de reversão” de forma semelhante aos Alcoólicos Anônimos, com 12 passos para a reabilitação (como se ser LGBTQIA+ fosse um vício). No entanto, suas práticas lembravam a tortura da Segunda Guerra Mundial, incluindo choques na genitália caso a pessoa tivesse alguma ereção ao ser exposta a estímulos visuais de pessoas do mesmo gênero.
Essa pesquisa me chocou profundamente, não apenas devido à conduta da “LIA”, mas também pela suposta eficácia garantida às famílias que pagavam 2 mil dólares por mês para que seus filhos e maridos deixassem de ser uma “abominação” aos olhos de Deus. No entanto, 70% dos participantes desenvolviam ansiedade, pânico, depressão, e 30% chegavam a cometer suicídio.
Anos depois, o que pesquisei inspirou o filme “Boy Erased” e o documentário “Pray Away” da Netflix.
No Brasil, desde 2018 até hoje, a onda conservadora neopentecostal tem tentado diversas vezes anular a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CRP) que proíbe essa prática por psicólogos. No entanto, nesse mesmo Brasil, vemos a bancada religiosa ganhar mais força no Congresso, o crescimento do fundamentalismo capitalista e a constante ameaça de retrocessos nos direitos conquistados com muita luta pela comunidade LGBTQIAP+.
E sim, a “cura gay” no Brasil ocorre todos os dias, seja por meio da homofobia, expulsão de adolescentes de suas casas ou em centros religiosos que operam no mesmo modelo que a “LIA” de Memphis, nos EUA.
Na madrugada mais recente, a influenciadora de extrema-direita Karol Eller postou uma despedida em suas redes sociais: “Perdi a guerra, me perdoem!” Alguns dias antes, ela havia mencionado que estava iniciando o processo de “reversão”, a fim de anular sua homossexualidade e, assim, corresponder às expectativas de sua fé. Coincidência? Não!
Essas tristes estatísticas que eu acompanhei em 2014 agora têm números nacionais. A questão é: como mudar quem se é? Pedir a alguém que mude, controle seus desejos, modifique sua identidade, pensamentos e memórias é uma tarefa árdua.
O preconceito afeta as pessoas profundamente, levando ao sentimento de culpa por não corresponder às expectativas alheias, resultando em transtornos mentais como depressão e ansiedade.
As terapias de “reversão” apenas agravam essa sensação de inadequação e disforia, pois, mesmo com todo o “aparato” (incluindo tortura física e psicológica), as pessoas não conseguem mudar.
Sigmund Freud, em 1914, descreveu o conceito de “egodistonia”, que é o oposto de “egossintonia”. A egodistonia ocorre quando os aspectos do pensamento, impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos entram em conflito com a própria pessoa. Por exemplo, quando alguém é homossexual, mas discorda dessa característica. Nesses casos, a atividade mental está em oposição ao ego, levando ao adoecimento.
A “cura gay” não apenas causa sofrimento, mas também pode levar à morte. À medida que a agenda conservadora avança, essa prática ameaça ainda mais a comunidade LGBTQIAP+, e é importante ressaltar que essa questão envolve não apenas aspectos religiosos, mas também interesses financeiros significativos.