Quando apresentada, a proposta de déficit zero para o orçamento de 2024 foi muito combatida dentro e fora do governo.
A ministra Simone Tebet e o presidente Lula entendiam que apesar de servir como calmante para o deus-mercado, a proposta seria irrealista e arriscada para o governo.
No debate público, muitas vozes também questionaram o objetivo do ministro Fernando Haddad. Alertavam que poderia se tornar uma arapuca, deixando o governo obrigado a praticar uma austeridade severa, com corte de gastos sociais e dos investimentos essenciais.
Com o agravante disso acontecer no ano das eleições municipais mais relevantes e decisivas da história do Brasil no enfrentamento ao fascismo e à extrema-direita [artigos A armadilha do arcabouço, de 13/4 e A armadilha do déficit zero, de 5/9].
Apesar da contrariedade do próprio Presidente da República, prevaleceu, entretanto, a meta defendida pelo ministro da Fazenda.
Haddad tinha como um dos pressupostos para sustentar sua posição a expectativa –duvidosa, no mínimo– de que a Câmara eliminaria os “ralos fiscais” ampliados sobremaneira com o golpe de 2016.
Tratam-se de regalias tributárias pelas quais um punhado de indivíduos e famílias ricas, bem como empresas e grandes conglomerados econômicos se apropriam indecentemente de centenas de bilhões de reais do orçamento público ano após ano.
Uma rotina secular de pilhagem que não será mudada sem mudança na correlação de forças no Congresso. O simulacro de taxação de milionários e bilionários pela Câmara deve ter desfeito a ilusão do Haddad em conter o que ele chama “erosão tributária”.
Depois que Lula conheceu os números da Fazenda que confirmam a impossibilidade de se zerar o déficit em 2024, ele reagiu [27/10]: “Eu não vou estabelecer uma meta que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para este país”. E acrescentou: “E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é [que acontece]? Nada!”.
Haddad se recusa a mudar de rota mesmo conhecendo o irrealismo do seu objetivo. “A minha meta está estabelecida. Não mudei de ideia, continuo com a mesma ideia, porque acredito que vai ser o melhor para o país. Agora, eu preciso de apoio político”, disse.
Importante destacar a ênfase de Haddad no emprego reiterado da primeira pessoa do singular – “minha meta”, não a meta do governo; “[eu] continuo com a mesma ideia”; “[eu] acredito que vai ser o melhor para o país”. “Eu”, e não o governo Lula, “preciso de apoio político” …
O governo agora projeta um déficit de 0,5%. Com isso, se desviará da armadilha criada por um dogma neoliberal que não é obedecido por nenhum país do G20. A imprensa noticia, porém, que a mudança ainda não tem “a chancela de Haddad”.
Mudando a política fiscal que engessaria seu governo em pleno ano eleitoral, Lula antecipou para o presente as críticas, ataques e prejuízos políticos que o desgastariam durante a eleição.
Esta crise será muito proveitosa se, além de evitar a armadilha do déficit zero, o governo também souber tirar lições sobre os limites do seu processo de decisão – isolado, com baixa capacidade de escuta externa e opção pelo não-enfrentamento de conflitos, mesmo em questões cruciais para a governabilidade e para a democracia como as finanças, os militares e outras questões.
Voltando 11 meses no tempo até regressar ao período de transição, é possível se relembrar as escolhas equivocadas que levaram ao impasse atual do governo.
Na campanha, Lula anunciou a revogação do Teto de Gastos. Com o estouro do Teto em quase R$ 800 bilhões pelo desastroso governo fascista-militar, os neoliberais perderam legitimidade e credibilidade para impor qualquer substituto fiscal.
Apesar disso, contudo, na discussão da PEC da Transição o governo eleito inexplicavelmente se comprometeu a apresentar até agosto de 2023 uma proposta de nova âncora fiscal – mesmo sem necessidade e desperdiçando a enorme autoridade da vitória do Lula em 30 de outubro.
Na época [novembro/2022], o governo não deu ouvidos a alertas importantes.
O senador Renan Calheiros, por exemplo, recomendou que, em lugar da PEC, Lula enviasse ao Congresso uma Medida Provisória no primeiro dia do seu mandato. Ele evitaria, desse modo, se tornar refém do bando extorsionário e achacador chefiado por Arthur Lira.
No entanto, o governo outra vez escolheu um caminho contraproducente e contraditório com seus próprios interesses.
Desmontar a armadilha do déficit zero é fundamental para o governo Lula, sobretudo devido à eleição municipal do próximo ano. Este episódio traz, além disso, outras lições que precisam ser aprendidas.