Uma frase famosa entre os jornalistas diz que um cão morder um homem não é notícia, mas o contrário sim.
Da mesma forma é notícia que uma pessoa seja assassinada na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, muito mais do que duas na Ilha do Governador.
O peso talvez seja de 5 para 1, com possíveis mudanças em decorrência da idade, classe social, cor ou profissão.
O próprio secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Maria Beltrame, já disse que “um tiro em Copacabana é uma coisa. Na Favela da Coréia é outra”.
A dor, porém, parece a mesma.
O que muda é que não há nada com o que não possamos nos acostumar. E nos acostumamos tanto a saber do assassinato de gente pobre em lugares pobres que já não há como se espantar.
Por mais que não aceitemos o que é de hábito como coisa natural, como suplica Brecht expressamente. “Em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada”, ainda assim.
Não podemos negar a trivialidade da morte violenta de alguns. E Amarildos e Cláudias ganham as manchetes vez ou outra apenas quando são assassinados dentro de sedes da polícia ou arrastados como lixo pelo asfalto. Aí ainda somos capazes de algum espanto.
Mas o que choca em casos como o do médico Jaime Gold, morto a facadas durante um passeio de bicicleta pela Lagoa essa semana, é também o medo de que podia ser um de nós.
Um de nós que nunca fomos ou seremos Amarildos, no máximo Charlie Hebdo ou Jaime Gold.
Que conseguimos fingir que vivemos em uma bolha segura, enquanto há guerra em toda parte. Que conseguimos separar nós e eles.
Hoje a Lagoa amanheceu com centenas de policiais a proteger essa bolha, numa proporção talvez maior do que em qualquer outra parte da cidade.
As favelas próximas já foram “pacificadas”, ou ao menos ocupadas pela polícia, o que reforça a sensação de bolha.
As linhas de ônibus que vem da periferia são agora o alvo e policiais já permanecem em posições estratégicas, próximos aos pontos de ônibus, para revistar elementos suspeitos – identificados principalmente pela cor da pele. Há inclusive um forte movimento para impedir que uma linha que passa por vários complexos de favelas chegue direto à Lagoa.
Parece assim que cada vez mais vivemos um apartheid para hipócritas. Para gente que gosta de se ver como um cidadão de bem, que espera apenas proteção policial, vigilância e segregação, ou que sonha em se mudar para a bolha.
Um apartamento na região, porém, não sai por menos de 1 milhão de reais, e talvez por isso o morador também se revolte tanto com a violência dentro da bolha, muito mais do que fora dela.
Afinal, pagou caro – ou herdou, como na maioria dos casos – para viver em local seguro. Paga ainda uma fortuna de IPTU, de condomínio, de seguranças privados…
O suspeito de assassinar o médico Jaime Gold tem 16 anos e já podemos ouvir também o grito histérico de que com a redução da maioridade penal essa morte poderia ser evitada. Mas a ficha do suspeito revela também que ele já comete crimes desde criança.
Podem dizer então que alguns são maus desde o útero, como é do feitio de quem gosta de respostas fáceis. O curioso é que esses “maus”, em sua imensa maioria, cresceram na miséria e as penitenciárias e reformatórios são em geral depósitos de traficantes pobres, ladrões, assassinos e estupradores pobres. Então o argumento da vez é de que muitos também crescem na pobreza e não se tornam criminosos.
Mais curioso ainda é que em países em que a miséria não existe ou as desigualdades são muito menores, os índices de criminalidade sejam baixíssimos. Na Islândia, a polícia matou pela primeira vez ano passado.
Vigiar e punir cada vez mais, e cada vez mais jovens, é então a tentativa mais estúpida possível de resolver o problema, ao agir apenas sobre a conseqüência.
Na relação entre políticas históricas absurdas, riqueza excessiva, pobreza e criminalidade, combater o último ponto, sem defender medidas radicais de combate também à desigualdade, é enxugar gelo, é querer se vingar de crianças e não fazer justiça, é chocar o ovo do fascismo.
É o discurso de segurança pública mais fácil e a solução mais rasteira, a promessa mais fácil de ser compreendida, e por isso rende votos. Por isso se mantém.
Mas o ponto central de tudo, como escreveu o advogado e blogueiro Eduardo Goldemberg, é que o médico Jaime Gold foi vítima de outras vítimas.