Por Carol Proner – advogada, Professora da UFRJ, fundadora da ABJD
É fato que a maior parte das regras de direito internacional humanitário só são convencionadas após o cometimento das atrocidades. Muitas vezes são necessários anos para que uma conduta específica venha a ser proibida pela comunidade de Estados, a depender da memória histórica preservada e da capacidade de articular uma censura ao que representa uma ameaça universal.
Por outro lado, a comunidade internacional não nasceu ontem. Acumulam-se séculos de experiências dramáticas com todo tipo de guerra e os ajustes para a paz das quais derivaram princípios transversais a qualquer cultura, lugar e tempo. Datam de milênios e passam por Confúncio, Mahabharata, Zoroastra, Homero, Polibo, Viqaet, pela idade média e a cavalaria, passa sobretudo pelas religiões monoteístas que definiram linhas vermelhas aos conflitos bélicos, transcendendo regras de racionalidade que, mesmo admitindo a guerra como um direito (jus in bello), definiram condutas-limite para permitir, em cada caso, a recomposição, o recuo, a trégua, a rendição e mesmo o alcance da paz.
Isso sem falar, com a modernidade, na convencionalidade dos Estados-nação, as conferências e a regulação específica de condutas com base nos traumas das Guerras Mundiais, a consolidação do princípio da proporcionalidade dos fins de uma guerra, o princípio da distinção entre combatentes e não combatentes, a proteção de civis e de prisioneiros de guerra, as garantias de alvos protegidos e tudo o que, grosso modo, conhecemos como Direito de Genebra.
Eis o que espanta na resposta de Israel sobre Gaza. Depois de milênios de acúmulo de racionalidade no direito de Guerra, a decisão dos comandos militar e político é de negação absoluta.
Isso torna a ressalva aos terríveis ataques do Hamas uma piada de mau gosto. Ou acaso as mães e os bebês palestinos valem menos que os bebês e os civis israelenses? Esse debate, ao lado do marketing que apela à confusão entre antissemitismo e antissionismo, é uma gigantesca armadilha para disfarçar a deliberada decisão dos comandos de negar absolutamente qualquer regra civilizatória e, contrário senso, cometer todo tipo de crime que atravessar a estratégia de, aparentemente – não sabemos – nova ocupação territorial.
Israel perdeu a noção do absurdo e, para a perplexidade de estrategistas do mundo inteiro, ignora as consequências do próprio isolamento e a covardia de bombardear uma população acuada e em condições desaparecimento iminente.
Sempre me perguntam e, sim, juristas do mundo inteiro entendem que há propósito genocida nas condutas de Israel sobre Gaza e a Cisjordânia e, com fundamento no Estatuto de Roma, chegamos a elaborar uma das muitas denúncias junto ao Tribunal Penal Internacional com a correspondente solicitação de uma investigação independente. Mas tem algo estranhamente perverso acontecendo no decurso dos ataques e que vai além da tipificação de crimes e condutas proibidas pelo DIH. Preocupa especialmente algo novo, uma conduta assumidamente displicente e bestial que pode se tornar um exemplo a seguir, um alerta para o mundo.
É especialmente grave e ilegal ajoelhar indiscriminadamente pessoas e fazê-las desaparecer em cárceres sem monitoramento de qualquer tipo. É especialmente perverso que atiradores posicionados alvejem crianças e mesmo bebês em escolas e hospitais, assumindo estes lugares como alvo prioritário e não de proteção. É espantosamente cruel bombardear a última padaria de uma cidade ou exterminar pessoas que recolhem água da chuva para sobreviver. É monstruoso que uma potência ocupante, com toda a tecnologia bélica e de monitoramento, delibere renunciar às negociações e assuma a possiblidade de morte de dezenas de reféns por meio de decisões militares cruéis, como enxertando gás ou água salgada em túneis e, como tal, assumindo francamente o risco de atingir os cativeiros e sufocar ou afogar seus próprios cidadãos.
É especialmente grave que um Estado que foi beneficiado pela mesma Comunidade Internacional ignore apelos para que respeite regras humanitárias de contenção. Que negue e que responda massacrando intencionalmente população etnicamente definida com métodos de perversão do direito humanitário. O que esperar dos próximos dias? Seguirá a Comunidade Internacional inerte diante de tal precedente que, como em outros tempos, definirá os rumos do direito da guerra? É difícil saber as razões de tanto silêncio, mas em pleno século XXI, será impossível esquecer.