Por Leonardo Sakamoto
Não é preciso ser analista político para perceber que a CPI que mira o padre Júlio Lancellotti, e deve ser instalada na Câmara Municipal de São Paulo neste começo de ano, é um ato que visa à eleição municipal de outubro.
Em parte, para atingir o pré-candidato Guilherme Boulos (PSOL), próximo ao pároco, e que está à frente do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Mas, principalmente, para garimpar votos de uma parcela da população que terá orgasmos ao ver Júlio sendo linchado em praça pública.
Poucas coisas incomodam mais o pessoal que anda com a Bíblia debaixo do braço apenas como propaganda de retidão ou como instrumento de controle político, mas não deseja por em prática as palavras transformadoras dos Evangelhos, do que alguém que expõe, com seu próprio trabalho, o comportamento de neofariseus.
Padre Júlio, ao dedicar a vida àqueles que o resto da sociedade trata pior do que lixo, é um lembrete da hipocrisia de quem enche a boca para falar da solidariedade presente nas sagradas escrituras do cristianismo, mas tem medo de coloca-la em prática. O convite feito pela pregação de Jesus de Nazaré é simples, mas significa mudanças profundas que muitos que dizem “amém” não estão dispostos a fazer.
Como lembrou o papa Francisco em mensagem pelo Dia Mundial dos Pobres, em novembro, “a partilha deve corresponder às necessidades concretas do outro, e não ao meu supérfluo de que me quero libertar”. E cita o Evangelho de Mateus capítulo 25, versículo 40: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes”. Sim, uma porrada.
E aqui me lembro de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.
Linchar o Padre Júlio em praça pública será, portanto, bem recebido por uma parcela que quer calar o incômodo. Mas também por aqueles que, atingidos pela grave situação social que temos no Centro de São Paulo, não culpam as causas que levam pessoas à situação de rua, mas aquele que tenta aliviar a dor delas. Talvez na expectativa de que morram todos por inanição, frio ou calor. Sem contar os arautos da especulação imobiliária, que são os donos da capital.
Não é a primeira vez que políticos de extrema direita promovem linchamentos públicos para colher dividendos eleitorais. Tivemos isso com exposições de arte, com militantes de direitos humanos e mesmo mentiras atribuindo crimes contra o próprio coordenador da Pastoral do Povo de Rua. Ou seja, a CPI das ONGs, ou melhor dizendo, a CPI do Padre Júlio, além de estúpida, padece também de falta de criatividade.
A Arquidiocese de São Paulo entrou em cena, jogando o seu peso. Nesta quarta (3), em uma nota, diz que viu com “perplexidade” a situação e pergunta “por quais motivos se pretende promover uma CPI contra um sacerdote que trabalha com os pobres, justamente no início de um ano eleitoral?”
E lembra que ele é vigário episcopal da Arquidiocese e exerce trabalho para atender, acolher e cuidar das pessoas em situação de rua. “Reiteramos a importância do trabalho da igreja junto aos mais pobres da sociedade”, conclui.
Ao final, Padre Júlio sairá ainda maior de tudo isso porque os fatos estão a seu lado, mesmo que vivamos um tempo em que fatos importam menos diante de narrativas.
O triste é constatar que, caso a CPI saia do papel, ela vai cumprir o objetivo de seus arquitetos e ajudar a garantir votos, ao menos para reeleger vereadores preocupados mais em si do que com o mundo à sua volta.
Originalmente publicado no Uol
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