Assim que o padre Júlio Lancellotti foi colocado como possível foco de investigação na Câmara dos Vereadores de São Paulo, o religioso também passou a ser alvo de uma onda de desinformação e discurso de ódio nas redes sociais. Monitoramento feito pela Lupa identificou uma corrente de informações falsas e descontextualizadas que o acusa — sem provas — de abuso sexual e pedofilia.
Lancellotti ficou conhecido pela atuação junto a pessoas em situação de rua e, atualmente, coordena a Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que pode mirar o trabalho do padre foi proposta pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil) em dezembro do ano passado. Até o dia 10 de janeiro, pelo menos dez vereadores retiraram o apoio à CPI — a Câmara paulistana decidirá se a comissão será instalada ou não após o recesso parlamentar, em fevereiro.
A proposta de CPI repercutiu nas últimas semanas e mobilizou políticos à esquerda — em defesa do sacerdote — e à direita — críticos a ele. Perfis nas redes sociais de lideranças políticas da direita ajudaram a aumentar a circulação de fakes sobre Lancellotti.
É o caso do deputado federal bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO), por exemplo, e do ex-ministro da Educação no governo de Jair Bolsonaro (PL) Abraham Weintraub, que concorreu ao cargo de deputado estadual em São Paulo em 2022 pelo PMB, mas não se elegeu. Ambos fizeram publicações que colocam em xeque a idoneidade do religioso e o associam à pedofilia sem apresentar provas.
Não há comprovação de abuso sexual e pedofilia; acusações são antigas e sem contexto
A reportagem identificou uma série de conteúdos que imputam a Júlio Lancellotti o crime de pedofilia e abuso sexual — o que nunca foi comprovado. Essas publicações apresentam diferentes abordagens descontextualizadas de acusações que remontam a 2007, ano em que o padre foi vítima de extorsão.
Naquele ano, um grupo de quatro pessoas, incluindo um ex-interno da Fundação Casa (antiga Febem), Anderson Marcos Batista, ameaçou agredi-lo e denunciá-lo por pedofilia à imprensa caso não fizesse pagamentos.
Após queixa registrada pelo padre, o caso foi investigado pela Polícia Civil de São Paulo. Quando Batista foi preso, ele negou qualquer tentativa de extorsão contra o padre e afirmou, sem apresentar provas, que recebia dinheiro de Lancellotti para manter silêncio sobre um suposto relacionamento amoroso entre os dois ao longo de oito anos.
Em novembro de 2007, a polícia encerrou o inquérito e concluiu que o religioso, de fato, sofreu extorsão.
Somente em maio de 2011, quase quatro anos após a denúncia, a Justiça de São Paulo condenou dois dos envolvidos no caso — o ex-interno Anderson Marcos Batista e a esposa Conceição Eletério. Eles foram condenados a sete anos e três meses de prisão. De acordo com a promotoria, os criminosos ameaçaram “dar um tiro na cabeça” do padre caso ele não desse dinheiro — essa abordagem foi filmada por câmeras de segurança.
Denúncia de abuso de 2007 não foi comprovada
Em um vídeo de quase dois minutos — compartilhado, inclusive, pelo deputado Gustavo Gayer e com mais de 184 mil visualizações —, um homem repete uma série de acusações contra Lancellotti. Além de repetir a acusação relacionada ao ex-interno da Fundação Casa, o homem do vídeo afirma que o padre Júlio teria abusado sexualmente de um adolescente da Casa Vida, instituição fundada por ele em 1991 para abrigar crianças e adolescentes com aids.
Essa denúncia, no entanto, nunca foi comprovada e também remonta a 2007, mesmo período em que o padre denunciou ser vítima de extorsão. Naquele ano, uma ex-funcionária da Casa Vida disse ter sido testemunha de abuso sexual cometido pelo padre contra um adolescente, supostamente também ex-interno da Fundação Casa, no ano de 1999. A Polícia Civil de São Paulo abriu um inquérito na época, mas as acusações também não foram comprovadas.
Procurada pela reportagem, a Polícia Civil de São Paulo informou que, no momento, não há nenhum inquérito policial que investigue o padre como autor de um crime. “Foi localizado somente um caso de extorsão, resistência e associação criminosa no qual ele figura como vítima, no ano de 2007, que tramitou pela 5ª Delegacia Seccional (Leste)”.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, não há nenhum processo envolvendo o nome de Lancellotti relacionado a abuso sexual.
Originalmente publicado em agência Lupa