Por Luís Guilherme Vieira
O ministro Ricardo Lewandowski sequer assumiu o Ministério da Justiça e já declarou que a sua prioridade será o enfrentamento das milícias, dos crimes organizados, do tráfico de entorpecentes etc.; enfim, é só mais um a ditar a mesmíssima precedência em sua agenda.
Em ano eleitoral, os pré-candidatos a prefeitos alvoroçados com o oportuno discurso de forte apelo popular espalham idênticas predominâncias, como se a temática estivesse no âmbito de suas atribuições.
A segurança pública foi um dos mais ferventes assuntos nas últimas eleições para presidente da República e governadores, diferindo a temática para resolver (sonho ou delírio?) ou minimizar o problema, postas sob óticas completamente díspares, não raro edificadas em solo arenoso.
Neste enfrentamento do discurso, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não foi deslembrada, pelo contrário, foi apresentada como órgão que seria posto em atividade para tal desiderato usurpando, às escâncaras, às atribuições das autoridades policiais (e do Ministério Público, em face de decisão, que se discorda, do Pleno do Supremo Tribunal Federal).
Fato é que o exponencial crescimento da criminalidade (aparente, porque a maioria absoluta dos crimes não é registrada nas delegacias policiais; quiçá, registrada, não é investigada) nos últimos quase 40 anos só aumenta em proporções (mais que) geométricas e o horizonte longe está de ser avistado.
Os dados estatísticos não desmentem a assertiva. A título de ilustração, se se levar em conta somente o número de presos hoje no Brasil – independentemente de se questionar a sua legalidade; tirando os que respondem a processos em liberdade ou cumprindo medidas alternativas à prisão etc. – está na casa de 1 milhão. Ou seja: em 1995 o país tinha 150 mil e em 2024 cerca de 1 milhão [1]!
Desnecessário, pois, qualquer profissional em estatística para desvelar as incorretas informações divulgadas por agentes dos poderes públicos e replicadas, de maneira acrítica (talvez intencional) por parte da grande mídia e redes sociais. Enfim, as palavras os ventos levam, mas o verbo fica cravado nas pedras; os historiadores do futuro apontarão o fato sem pejo.
Alienígenas ao sistema processual
Defendem, em clichês retóricos, o investimento na Abin (“que objetiva produzir e difundir conhecimentos às autoridades competentes [os chefes dos Poderes Executivos], relativos a fatos e situações que ocorram dentro e fora do território nacional, de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, a ação governamental e a salvaguarda da sociedade e do Estado”) e em contrainteligência (“que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado”), como medida eficaz a combater a criminalidade, como se a agência, repita-se, detivesse tal atribuição – e, ainda que tivesse, haveria de ter dons mágicos.
A atuação da Abin em investigações criminais usurpa as funções da polícia judiciária em uma afronta à democracia. Além de partir de uma orientação deturpada do estabelecido na Constituição da República e no Código de Processo Penal, ao consentir com a investigação de crimes promovida por aqueles que deveriam atuar, preventivamente, em situações referentes a assuntos de segurança de ações governamentais, confere-se licitude/legitimidade à prova produzida por quem não detém atribuição vilipendiando, em decorrência, os direitos e as garantias da pessoa humana, mormente daquelas que se encontram arrastadas às mazelas de um processo penal, como pontificava Francesco Carnelutti.
O propósito de uma investigação criminal é justamente evitar acusações temerárias e/ou abusivas, considerado que o processo penal, se vier a ser inaugurado, tem como fundamento a preservação da instrumentalidade constitucional.
Ao se facultar que a Abin investigue crimes, sendo esse o lastro (ou um dos lastros) à propositura de processos penais, significa comentar que o Estado está autorizando, em desrespeito a Constituição, o que lhe é defeso, que alienígenas ao sistema processual investiguem crimes e produzam provas sem nenhum controle do Ministério Público e do Judiciário, este nas hipóteses de existir reserva de jurisdição, malferindo, inclusive, o sistema de custódia da prova no processo penal[2]; é um escárnio.
O inquérito policial, diferentemente, inicia-se após a prática do delito, com o objetivo de investigar os fatos, materializando-os, e individualizando a conduta do investigado, tudo devendo ser documentado e mediante o controle externo do Ministério Público.
Procedimento deve ser formal, documentado e acessível
A sociedade tem que ter certeza de que no curso da investigação criminal não haverá abusos por parte do poder acusatório penal. Portanto, aquele há de atender ao interesse de eficácia dos direitos fundamentais dos cidadãos, de modo a evitar acusações e processos infundados e/ou temerários; neste campo não vige o vale-tudo; ao revés, o vale-tudo pode levar os contendores a responsabilização administrativa punitiva, a inquérito policial, a ação de improbidade e de danos moral e materiais.
Daí a importância de que o inquérito policial seja conduzido a partir de um procedimento formal, documentado e acessível ao investigado e ao seu advogado. O filtro processual contra as provas ilícitas ou ilegítimas depende, como leciona Geraldo Prado [3], justamente possibilitar o rastreio das provas à sua fonte de origem; não sendo assim, sucumbirá à paridade de armas e demais princípios constitucionais tão caros ao devido processo penal.
Contrainteligência não se confunde com investigação criminal
A Abin é o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Lei 9.883/1999) e tem por finalidade fornecer ao presidente da República informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao exercício das respectivas funções, mirando que políticas públicas sejam implementadas e postas a serviço da soberania nacional.
Na literalidade do artigo 4º da precitada lei, compete a Abin: (i) planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o presidente da República; (ii) planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade; (iii) avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional; e (iv) promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento dessa atividade intelectiva.
Os procedimentos de construção e maturação das atividades de inteligência e de contrainteligência não se confundem com uma investigação criminal, pois enquanto esta procura elucidar crimes, aquelas visam, preventivamente, conhecer os atores e os fenômenos mais abrangentes, dados indispensáveis ao processo decisório do chefe de Estado, para que políticas públicas mais eficazes possam ser desenhadas e implementadas.
Afinal, não deve o Judiciário, mesmo sendo confrontado com situação fático-jurídica de expansão dos métodos ocultos de investigação, por mais graves e rumorosos sejam os crimes, aquiescer diante de violação a direitos e garantias fundamentais. Não deve o Judiciário, com receio de desagradar a opinião pública, validar provas produzidas por quem, constitucionalmente, não detém atribuição.
O caso que envolve o ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem, poderá ser, espera-se, um divisor de águas nos desvios de função e crimes perpetrados amiúde por agentes da agência para atender os mais espúrios interesses que não são os da nação brasileira, devendo ser a ele assegurados todos os seus direitos e garantias constitucionais. Não há de ter revanchismo e os meios jamais justificarão os fins em um Estado Democrático de Direito.
[1] Nova Lei de Drogas: cadeia para quem precisa de cadeia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-09/luis-guilherme-vieira-cadeia-quem-cadeia/. Acessado em: 26/1/2023.
[2] PRADO, Geraldo. A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
[3] Idem.
Publicado originalmente no ConJur
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