Um garçom do Tribunal Superior do Trabalho (TST) descobriu, durante palestras e audiências no tribunal, ter sido vítima de trabalho escravo dos 4 aos 18 anos em fazendas no interior do Maranhão. Com informações da Folha de S.Paulo.
O despertar teve início em 2022, quando Maurício de Jesus Luz, de 44 anos, escutou a palestra da empresária Simone André Diniz pela caixa de som da copa do TST. Na ocasião, ela denunciou ter sido vítima de racismo ao ser rejeitada para uma vaga de emprego como empregada doméstica.
O caso foi arquivado por falta de provas, mas a denúncia resultou na responsabilização do país por violação aos direitos humanos.
Maurício considerava normal o que havia sofrido na infância e na juventude, uma situação comum em sua região, no município de Tucuruí (PA). O garçom relatou que não recebia salário e era agredido fisicamente quase todos os dias, com golpes de chicote, chibata, corda, lapada, chutes e beliscões.
A vítima também era alvo de xingamentos como “neguinho escravo” e “filhote de urubu”.
“Quando eu ouvi o que a patroa fazia com ela, vi que a história era parecida com a minha. Por mais que eu trabalhasse, nunca agradava o patrão. Eu trabalhava 24 horas sem receber, era um escravo moderno. Quando você não tem conhecimento, ninguém para te abrir a mente, aquilo se torna normal”, disse Maurício à Folha de S.Paulo.
Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) indicam que, no ano passado, 3.190 pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão no Brasil, o maior número em 14 anos. Entre 2021 e 2023, os 24 tribunais regionais do trabalho receberam 2.786 processos sobre o tema.
Neste domingo (28) é celebrado o dia nacional de combate ao trabalho escravo. Ações de conscientização e fiscalização estão programadas para marcar a data.
O garçom contou que veio de uma família muito pobre e foi abandonado aos 8 meses pela mãe, que o deixou com uma vizinha. O pai foi embora ainda antes de ele nascer, com seus quatro irmãos, que nunca conheceu.
Ao perceber que a mãe não retornaria, a vizinha o entregou para a avó, que trabalhava em uma fazenda no município de Imperatriz (MA). Ela era uma espécie de faz tudo no local e não recebia remuneração.
Os dois moravam em condições insalubres, alimentando-se de sobras e dormindo no estábulo, junto às selas dos animais e maquinários. O acesso aos banheiros da casa era proibido, fazendo com que utilizassem o mato e tomassem banho no rio.
Maurício relatou que aos 4 anos já começou a realizar tarefas como transportar bacias d’água e alimentar animais, sob o argumento de justificar as despesas que dava à sede. “Tinha vezes que a dona da casa me chamava de neguinho escravo, filhote de escravo, filhote de urubu, estorvo, esse era o palavreado. Pelo nome, nunca chamaram. Era negão, macaco, de acordo com a situação”, relembrou.
A jornada piorou aos 9 anos, quando sua avó morreu, e as obrigações aumentaram. A rotina começava às 3h da manhã e se estendia até as 21h. Muitas vezes, era acordado por barulhos de tiro propositais disparados só para assustá-lo, e ele tinha apenas uma muda de roupa que secava atrás da geladeira.
Como a entrada na cozinha era proibida, Maurício recebia a comida pela janela. Além disso, não tinha acesso a objetos de higiene pessoal.
“Era como se fosse o filho da mucama que ficou. E aí o dono acha que é teu dono também. Eu nunca fui a uma festa, nunca brinquei, era só trabalhar. Você recebe a vida como a vida lhe é oferecida”, disse.
“Muitas vezes eu não dava conta. Eles diziam: vai trabalhar, não pode parar, escravo não tem querer, tem obrigação. Na hora da raiva, quando eu levava uma lapada, uma cacetada na cabeça, e a dor persistia, eu falava que ia embora. Mas pensava: ‘Para onde?’ Aí a dor e a raiva passavam, e tudo recomeçava”, acrescentou.
Depois de sofrer um golpe no tórax que lhe tirou o fôlego, ele fugiu para uma segunda fazenda. Maurício acreditava que a experiência seria diferente na nova fazenda, uma vez que, segundo ele, era mais moderna e os proprietários eram religiosos.
Entretanto, o tratamento foi o mesmo, com violência e sem salário. “Nessa, eu jogava óleo diesel no cupim nas estruturas do curral com a boca, e ele [dono] ficava com a vara. Eu dizia: ‘Não’. E ele: ‘Não, o quê?’. Aí, enchia a boca de óleo diesel. Nessa também eu sofri bastante”, contou.
O único presente que recebeu foi sua certidão de nascimento aos 18 anos, dada por um casal de idosos que morava nos fundos da terceira fazenda em que trabalhou e que o registrou como filho. Na época, ele pediu que seu nome fosse Maurício, não mais Francisco, em homenagem a um locutor de rádio do qual ele gostava.
Nessa fazenda, ele não sofreu violência por parte dos donos, mas também não recebeu salário. Apesar de todo o sofrimento, Maurício não pretende buscar a Justiça contra os seus agressores.
O coordenador do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo do TST, ministro Augusto César Leite de Carvalho, disse à Folha de S.Paulo que a história de Maurício representa “a escravidão tradicional rural”.
Segundo Carvalho, outros tipos de escravidão contemporânea ainda estão muito presentes no país, praticadas até mesmo por grandes empresas na área urbana, que controlam o trabalhador por sua condição de dependência econômica.
“É possível perceber como, infelizmente, a nossa sociedade ainda naturaliza certas condutas. Pessoas pensam que, se ele está aceitando, é porque de alguma forma ele estaria concordando ou que trabalham em condições precárias porque estão acostumadas a isso”, afirmou.
O procurador Luciano Aragão Santos, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, destacou a importância da prevenção e redução da vulnerabilidade das potenciais vítimas, além de medidas punitivas administrativas e civis para os infratores.