Publicado originalmente no uol
Por Leonardo Sakamoto
O Brasil encontrou 3.190 trabalhadores em condições análogas às de escravo em 2023. O número é o maior desde os 3.765 resgatados em 2009.
Foram 598 operações de fiscalização e R$ 12,8 milhões de verbas trabalhistas pagas nos resgates, dois recordes no período de um ano, segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Celebra-se, neste domingo (28), o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida por causa da Chacina de Unaí, quando quatro servidores públicos foram executados no noroeste de Minais Gerais, durante uma fiscalização trabalhista, a mando dos fazendeiros Antério e Norberto Mânica, há exatos 20 anos.
Ao mesmo tempo, o país enfrenta desafios para erradicar o crime, para além da histórica resistência de determinados empregadores na agropecuária, no extrativismo, na indústria e no comércio e de seus representantes políticos no Congresso Nacional e nas Assembleias.
Por exemplo, em uma ação inédita, o Ministério do Trabalho e Emprego avisou, neste mês, que fiscalizará a safra de uva e a produção de vinho nas próximas quatro semanas no Rio Grande do Sul. Isso contraria a Organização Internacional do Trabalho e as normativas que regulam a fiscalização no Brasil para impedir que empregadores “maquiem” o ambiente de trabalho. Em 2023, 207 foram resgatados da escravidão na cadeia das vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi.
A decisão da pasta levantou o temor de tentativa de interferência sobre a fiscalização e seus resultados.
Durante sua gestão, o então presidente Jair Bolsonaro atacou diversas vezes o combate à escravidão contemporânea, divulgando desinformação sobre o tema e colocando em risco o trabalho dos auditores fiscais. Seu antecessor, Michel Temer, tentou dificultar o resgate de escravizados com uma portaria que mudava as regras do enfrentamento o crime em outubro de 2017 — que acabou sendo revogada após pressão da sociedade e uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
Em dezembro de 2014, o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo, a conhecida “lista suja”, ficou suspensa por dois anos após decisão do então ministro do STF Ricardo Lewandowski atendendo à solicitação de uma associação que reúne incorporadoras imobiliárias. Posteriormente, a constitucionalidade da lista foi confirmada pelo plenário da corte.
Café, cana, uva, gado, trabalho doméstico e construção civil
No ano passado, o país ultrapassou 63 mil trabalhadores flagrados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995.
A atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi o cultivo de café (302 pessoas), seguida pelo cultivo de cana-de-açúcar (258), a limpeza e preparação da terra (249) e o cultivo de uva (210). Mas considerando a quantidade de operações de resgate, a atividade econômica campeã foi a criação de bovinos de corte, seguida por serviços domésticos, o cultivo de café e a construção civil.
No total, 85% de todos os resgatados eram trabalhadores rurais, com a maioria dos casos envolvendo utilização intensiva de mão de obra terceirizada, em especial de migrantes internos, em períodos de colheita. Goiás foi o estado com o maior número de resgatados (739), acompanhado por Minas Gerais (651), São Paulo (392), Rio Grande do Sul (334) e Pará (74).
As operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel são coordenadas pela Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regionais do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
Após escândalo no vinho, governo ‘avisa’ data de fiscalização
O resgate de 207 pessoas que atuavam na colheita e carga e descarga de uvas em Bento Gonçalves (RS), em fevereiro de 2023, repercutiu dentro e fora do país.
Os trabalhadores denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta. Eles trabalhavam para a empresa prestadora de serviço Fênix Serviços de Apoio Administrativo contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
A operação teve início após um grupo fugir de um alojamento sem condições de higiene onde, segundo relataram, sofriam agressões. Vigilância armada era usada para garantir que tudo permanecesse do jeito que o patrão queria.
Eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte e, no alojamento, tinham que comprar produtos a preços muito acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que prendia os trabalhadores aos patrões. Dos 207 resgatados, 93% nasceram na Bahia, 95% se declaram negros e 61% não concluíram o ensino fundamental ou são analfabetos. Todos eram homens.
Na época, as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi informaram a imprensa que não tinham conhecimento do ocorrido, que não compactuam com a situação trabalhista encontrada e que os contratos com a empresa Fênix eram apenas para carga e descarga de uvas.
Por isso, causou estranhamento entre auditores fiscais do trabalho e servidores públicos de instituições que fazem parte do grupo móvel o “aviso” dado pelo ministério ao setor vinícola sobre a data em que as fiscalizações ocorreriam.
“A fiscalização se estenderá até o final da safra, no final de fevereiro e serão inspecionadas vinícolas da região e produtores rurais que, nesta época do ano, empregam mão de obra temporária”, diz a nota do site do ministério divulgada no dia 23 de janeiro.
Questionado pelo UOL, o Ministério do Trabalho afirmou que “a divulgação se limita a informar a data de início e término das fiscalizações no setor (período da safra) sem mais nenhum detalhamento, conforme pode ser verificado no release publicado no site institucional da pasta”.
Soma-se a isso uma declaração dada pelo gerente regional do Ministério do Trabalho, Vanius Corte, ao portal Leouve, de Bento Gonçalves. Segundo o registro do portal, o objetivo “é tentar deixar claro que o que aconteceu no ano passado foi uma coisa pontual e episódica, que essa não é a realidade dos nossos produtores, não é a realidade das nossas vinícolas”.
Maior resgate de 2023 ocorreu na cana em Goiás
Em março, 212 foram encontrados no plantio de cana-de-açúcar em Goiás. Eles estavam alojados em Itumbiara e Porteirão (GO) e Araporã (MG) e atuavam para a mesma prestadora de serviços que fornecia mão de obra a quatro fazendas e uma usina.
A prestadora de serviços terceirizados SS Nascimento Serviços e Transporte e cinco tomadores — quatro fazendas de cana e a unidade de Edéia (GO) da usina BP Bunge Bionergia (uma das maiores processadoras de cana do país) — assumiram a responsabilidade e se dividiram para pagar os trabalhadores.
Elas eram arregimentados no Piauí, no Maranhão e no Rio Grande do Norte através de “gatos” (contratadores de mão de obra) e transportados de forma clandestina para atuar na produção de cana em Goiás. “Quem tinha um pouco de dinheiro, comprava um colchão. Quem não tinha, dormia no chão, em cima de panos ou de papelão”, explicou à coluna o auditor fiscal Roberto Mendes, coordenador da operação.
Na época, a SS Nascimento Serviços e Transporte disse que “todos os fatos alegados serão devidamente esclarecidos no bojo dos processos administrativos e judiciais”. Já a BP Bunge Bioenergia disse, também em nota, que a empresa “agiu rapidamente em defesa dos trabalhadores para garantir as prioridades sociais e humanas e arcou prontamente com os pagamentos indenizatórios”.
Com ajuda do STF, desembargador levou doméstica resgatada de volta
No trabalho doméstico, 41 pessoas foram resgatadas em 2023 pelo poder público. Sônia Maria de Jesus foi uma delas. Encontrada no trabalho escravo doméstico por uma equipe de fiscalização na casa de um desembargador de Santa Catarina, em junho, ela foi levada de volta por ele para a sua residência com anuência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em setembro.
A Procuradoria-Geral da República denunciou Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina Gayotto, pelo crime de submissão de alguém à condição análoga à de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal. E endossou pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para que ela seja novamente retirada da casa.
Com aval do ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba levou Sônia de volta para a casa dele em 6 de setembro. Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada.
Diante da operação de resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como uma filha e entrou com um ação para ser restituída ao seu convívio familiar.
Logo após a decisão de Campbell, o ministro André Mendonça, do STF, negou um habeas corpus impetrado pela DPU contra a decisão do STJ. Ambos autorizaram o desembargador e sua esposa a visitarem Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles, em Florianópolis (SC), caso ela demonstrasse “vontade clara e inequívoca”
Em seu parecer, a PGR afirma que há laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade da mulher e a impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca. E que há oito depoimentos prestados por ex-funcionários do casal confirmando que ela trabalhava cotidianamente sem o recebimento de salários.
Sônia tem deficiência auditiva, mas nunca havia sido ensinada a ela a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela se comunicava principalmente por gestos com a família. Ela começou a aprender Libras e português no abrigo onde ficou após resgatada. Ela está há quase 40 anos com a família.
Segundo a fiscalização, na casa do desembargador, ela fazia refeições com as demais empregadas e realizava tarefas domésticas necessárias à rotina da residência, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças sem o devido registro em carteira, sem receber salário, sem jornada de trabalho, férias e descansos semanais definidos. Não tinha acesso a atendimento de saúde, tendo perdido dentes.
Jorge Luiz de Borba afirmou que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal, conforme esta coluna revelou ainda em junho. Questionada pelo UOL, na época da publicação do resgate sobre as postagens no Instagram, a família Borba afirmou, através de sua assessoria, que “em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”.
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.