O educador Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e um dos coordenadores da pré-campanha de Guilherme Boulos (PSOL-SP) para a Prefeitura de São Paulo, defende a presença da esquerda na discussão de Segurança Pública.
Cara também acredita que a delação homologada de Ronnie Lessa e as prisões preventivas dos irmãos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa não encerram o caso do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes.
Confira os principais pontos da entrevista do educador ao programa DCM Ao Meio-Dia.
“Rio de Janeiro está pior que Gotham City”
A milícia no Rio de Janeiro parece que tem um enorme poder de letalidade, mas uma inteligência muito pequena. A questão fundiária não era um tema do mandato de Marielle Franco. Não era prioridade.
Ronnie Lessa, o assassino dela, falou de um infiltrado no PSOL em termos que são inclusive desrespeitosos. Ele enfeitou demais o pavão. Ou seja, o infiltrado exagerou no poder de realização do mandato de Marielle contra o empreendimento.
O fato concreto é que, de qualquer maneira, essa é uma história que pouco se sustenta. Eu considero que, se isso ocorreu e é o único motivo, foi parecido com o que ocorreu com o irmão da Sâmia [Bomfim], que foi assassinado por engano junto com outros médicos na Barra da Tijuca, na praia.
O Rio de Janeiro está numa situação pior do que Gotham City [cidade fictícia do herói dos quadrinhos Batman]. Seria como o Coringa e outros personagens de ficção, como o Pinguim.
Uma linha de investigação que a gente seguia era de que o assassinato da Marielle era um crime político de ódio, pelo fato dela ser uma mulher negra dedicada a à luta por direitos sociais e direitos civis da comunidade LGBTAP+, pela luta racial. A delação do Ronnie Lessa desconstrói essas visões.
Visões que eu não considero que sejam possíveis de serem desconstruídas. Acho que elas são complementares. A motivação para realização do crime envolve essas visões.
A novidade no caso Marielle
Agora, a novidade desse caso é exatamente a participação do delegado Rivaldo Barbosa. Porque ele era uma pessoa que estava em constante comunicação com a família da Marielle e com Marcelo Freixo, com outras pessoas da política do Rio.
Se você retomar aí numa pesquisa do Google, desde 2018 havia indícios de que a família Brazão estava envolvida no crime. Só que eram indícios e não eram evidências. Não tinha nada que de fato os vinculasse ao atentado.
A novidade foi a participação do Rivaldo segundo a delação. Quero dizer que é preciso reconhecer o trabalho da Polícia Federal. Ele foi muito ágil diante de um crime que já tinha muito tempo.
Havia vários indícios de queima de arquivo ao longo do tempo. Queimas de arquivo foram cometidas.
Se fosse o governo Bolsonaro, isso não teria avançado. Não tenho dúvida nenhuma. Mas tem pontas que para mim ainda são soltas. E eu gostaria que esse inquérito não fosse dado por encerrado.
A motivação que foi levantada é frágil, porque a questão fundiária não era uma prioridade da Marielle. Se for verdade, significa que a milícia tem alto potencial de letalidade e um monte de trapalhão.
A isso está entregue a Cidade Maravilhosa, a cidade do Rio de Janeiro. Entregue a uma política que é miliciana. Tem aí construído um Estado de terror no Rio de Janeiro.
Uma sociedade pautada pelo terror. E isso precisa ser vencido. A nomeação do Braga Netto em relação ao Rivaldo um dia antes da morte da Marielle para chefiar a polícia civil do Rio é um escárnio.
Tem muita coisa ainda que eu acho que tem que ser investigada. Não me dou por vencido nesse sentido. Eu acredito que é preciso que a gente exija a continuidade das investigações.
Não é por uma necessidade de continuar investigando com objetivo político ou partidário. Não se trata disso. Se trata da necessidade de que de fato o crime seja revelado.
Quero saber o motivo da nomeação do Rivaldo para chefia da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Quero saber qual foi o grau de queima de arquivo dentro desse crime. Quantas pessoas foram assassinadas.
A esquerda precisa discutir segurança pública
Chega de passar pano! Vou dizer com todas as letras: Um roubo de relógio, um roubo de celular não se justifica. Quem mais tem o celular perdido não é o playboy que está andando na avenida Paulista ou na Faria Lima.
Perde mais o trabalhador quem vem do Jaçanã em São Paulo, das áreas periféricas. Muito provavelmente a senhora ou o senhor que pega ônibus às 5 horas da manhã. Que vai passar três horas no ônibus para chegar à avenida Paulista e precisa ligar para a filha ou para o empregador. E essa pessoa acaba tendo o celular furtado.
O roubo nesse país altamente desigual mostra que o caso do playboy de alta classe gera algum grau de reação da polícia, mas a esmagadora maioria que perde celular é o trabalhador e a trabalhadora, é gente comum.
É importante frisar que não tem que ter conivência com o bandido. Rio de Janeiro é muito pior. O prefeito Eduardo Paes deu uma entrevista na GloboNews em que diz que o Rio é igual aos outros lugares. Não é.
E em São Paulo tem, nas entrelinhas, uma falsa ideia de que a criminalidade é mais organizada pelas mãos do PCC. Mas é bandidagem do mesmo jeito. Não temos que ter orgulho disso. Pelo contrário.
Vou dizer com todas as letras aqui no DCM: “Eduardo Paes, em que mundo você vive?”
O recado que está sendo dado ao longo do tempo vai ser de que foi um equívoco matar Marielle Franco e Anderson Gomes. E não foi um equívoco, né? Pensando assim parece que os [irmãos] Brazão cometeram um erro de avaliação por um infiltrado que quis se vangloriar de ter informações estratégicas. Assim parece que de fato eles não tinham noção da gravidade desse crime, que foi muito maior.
Assim o Rio de Janeiro está de fato entregue a uma estrutura criminosa. Se não é entregue para a milícia, é o Comando Vermelho. Se não é o Comando Vermelho, é o Terceiro Comando.
Isso tem que acabar. E São Paulo não está em uma situação melhor, tendo uma organização criminosa terrível asquerosa como o PCC. O Brasil está rachado entre Primeiro Comando e congêneres contra o Comando Vermelho e adjacentes no embate dentro do crime organizado.
Veja a entrevista na íntegra.