A análise das minutas de decreto descobertas na investigação sobre o suposto plano golpista visando manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder destaca semelhanças com os argumentos legais empregados durante o golpe militar de 1964.
Termos como artigos, incisos, “considerandos”, menções à Constituição e o uso de expressões como “legalidade” e “Estado de Direito” estão em destaque, conforme informações da Folha de S.Paulo.
Há seis décadas, João Goulart foi deposto e substituído por um governo não eleito. Em 2022, o presidente eleito foi diplomado, mas os desdobramentos seguem um caminho diferente.
No entanto, ambos os cenários compartilham uma estratégia comum, conforme apontam especialistas do período: a tentativa de conferir uma aparência de legalidade a uma ruptura da ordem constitucional.
Essa estratégia não foi ocultada totalmente em nenhum dos episódios. Tanto o Ato Institucional nº 1, de abril de 1964, quanto a minuta de estado de sítio encontrada com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, admitem contradições com os procedimentos legais.
“Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país”, diz o preâmbulo do AI-1, ecoando o discurso dos militares de inserir a deposição de Goulart no contexto da luta contra o comunismo.
“Devemos considerar que a legalidade nem sempre é suficiente: por vezes a norma jurídica ou a decisão judicial são legais, mas ilegítimas por se revelarem injustas na prática”, afirma a minuta de decreto de estado de sítio encontrada pela Polícia Federal nas buscas contra Cid.
Nesse ponto em comum, ambas as narrativas tentam justificar o uso da lei contra o próprio Estado de Direito. A minuta associada ao bolsonarismo argumenta que decisões do STF conflitam com o princípio da moralidade, também previsto na Constituição, portanto, uma ação contra membros do tribunal seria legítima.
Por outro lado, o primeiro ato institucional da ditadura afirma que o poder constituinte “se manifesta pela eleição popular ou pela revolução”, utilizando o termo “revolução” para descrever o golpe de Estado contra Goulart.
“Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”, diz o texto.
O AI-1 foi elaborado por Carlos Medeiros Silva e Francisco Campos. Autor da Constituição do Estado Novo, Campos era reconhecido tanto por sua associação com o autoritarismo quanto pela sua erudição, o que lhe rendeu o apelido de Chico Ciência.
Já o grupo identificado pela Polícia Federal como “núcleo jurídico” para manter Bolsonaro no poder não possuía a mesma reputação.
Segundo a PF, ele era composto por Anderson Torres, então ministro da Justiça, Filipe Martins, assessor especial do presidente, o advogado Amauri Feres Saad, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, além de Cid.
Segundo Vera Chueiri, professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná), assim como Campos em 1964, o grupo de Bolsonaro também buscou “dar fundamentação jurídica a um golpe, mas com menos sofisticação”.
Ela faz referência tanto à minuta de decreto de estado de sítio quanto àquela encontrada com Torres, que previa a declaração de estado de defesa no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para reverter o resultado das eleições.
Já o historiador e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carlos Fico, relaciona o verniz jurídico de golpes e tentativas no país a outro aspecto histórico.
“No Brasil, as intervenções autoritárias foram todas de natureza militar, e os militares dão muita importância a manuais e regras”, afirma. “É por isso que sempre tem juristas por trás.”
Entretanto, compreender a função desses juristas nem sempre é fácil. As manobras institucionais para conferir uma aparência de legitimidade ao regime ditatorial não passaram despercebidas, nem mesmo para Magalhães Pinto, o governador de Minas Gerais que acolheu as tropas golpistas de 1964.
No caso de Bolsonaro, a investigação sobre a legalidade e o envolvimento do ex-presidente nas articulações golpistas no Planalto ainda está sob responsabilidade da Polícia Federal, juntamente com a avaliação de sua conexão com os ataques de 8 de janeiro.
Apesar de estar sujeito a medidas como recolhimento de passaporte e buscas e apreensões, Bolsonaro nega veementemente ter cometido qualquer crime, reiterando seu compromisso em agir “dentro das quatro linhas da Constituição”.