Com assassinato e fuga, Porsche vira licença para rico matar em São Paulo. Por Leonardo Sakamoto

Atualizado em 1 de abril de 2024 às 21:38
Fernando Sastre de Andrade. Foto: Divulgação

Por Leonardo Sakamoto

Fernando Sastre de Andrade, de 24 anos, matou o motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Viana, de 52 anos, na madrugada deste domingo (31), no Tatuapé, zona leste de São Paulo. A arma foi cara: um Porsche 911 Carrera, ano 2023, avaliado em R$ 1,3 milhão, que bateu em alta velocidade no Renault Sandero, causando fraturas múltiplas na vítima. E isso nem é a parte desconcertante do caso.

Dois policiais que atenderam à ocorrência permitiram que a mãe (!) de Andrade aparecesse por lá e o levasse embora para tratar de um ferimento na boca (!!). Só depois, PMs foram ao hospital para fazer o teste do bafômetro (!!!) e foram informados de que ele nunca deu entrada no local informado (!!!!). Tampouco atendeu aos telefonemas, muito menos se dignou a responder a campainha de casa (!!!!!…).

O boy que se escafedeu com a mommy é de uma família de empresários do ramo imobiliário, segundo apurou o UOL.

O caso se desenha como o puro suco do puro suco de Brasil. Imagine se ao invés de um herdeiro dirigindo um Porsche fosse um rapaz pobre, negro retinto, em um glorioso Fiat Uno que matasse alguém tirando um racha no Capão Redondo? Se a mãe do mancebo aparecesse e dissesse que iria levar o filho para botar um curativo seria fuzilada pelos agentes de segurança só com o olhar.

E sem o bafômetro, não há prova de que ele estava alcoolizado na hora do acidente, o que vai dificultar sua punição.

Sim, a tradicional carteirada foi substituída pela ostentacão da riqueza. Com ela, nem é preciso dizer: você sabe com quem está falando? Um bólido com 450 cavalos de potência já faz o serviço, o que, convenhamos, é muito mais elegante. Na cabeça desse povo, só pobre é que se justifica com subalternos.

A situação é própria de uma elite e de seus cães de guarda que acreditam que todos os “cidadãos” são iguais sim, mas não se incluem nessa categoria. Para uma parcela dos que têm mais dinheiro no bolso, as leis foram criadas para conter a massa de pobres, negros, iletrados, indígenas, os chamados “cidadãos”, e, portanto, não valem para ela. Não se veem como cidadãos, mas como donos.

O país é pensado para defender o patrimônio e os direitos dos “donos”, contendo vida e liberdades dos “cidadãos”. Tanto que a polícia de São Paulo foi um amor e super-compreensiva com os ricos enquanto fuzila sem perguntar na Baixada Santista, em operações como a Verão ou a Escudo.

Essa elite, quando colocada contra a parede, gosta de relinchar um bom “você sabe com quem está falando?”

O mesmo DNA disso estava presente nas palavras do empresário Ivan Storel, no dia 30 de maio de 2020, quando a polícia foi atender a uma denúncia de violência doméstica feita por sua esposa em um condomínio de classe alta próximo a São Paulo.

Em um vídeo gravado pelos agentes, é possível vê-lo gritando: “você é um bosta. É um merda de um PM que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Quero que você se foda, seu lixo do caralho. Você não me conhece. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville”.

Imagens do acidente. Foto: Divulgação

Frases como essas carregam séculos de nossa formação, para lembrar que na configuração social brasileira, uns falam, outros obedecem. Estão sendo vistas mais facilmente agora não por uma melhora da sociedade, mas por conta da popularização de smartphones com boas câmeras e das redes sociais e aplicativos de mensagens.

“Quem você pensa que é?”, frase menos agressiva e útil frente a algum desmando de um representante do Estado, não faz tanto sucesso por aqui. Pois não é o questionamento do uso exagerado do poder por um policial que está em jogo nesse momento de discussão, mas sim a afronta de tentar tratar um rico como se fosse um operário qualquer.

A ideia vai se adaptando conforme o ambiente e pode, agregando valores, assumir outras formas como “teu salário paga a comida do meu cachorro”, “eu conheço gente importante, sabia?”, você vai perder seu emprego, meu irmão”, “isso que dá viver em um país com essa gentinha”. É a pessoa que diz não entender o porquê de estar sendo processado na Justiça do Trabalho por jornadas de 14 horas por dia uma vez que tratava a empregada doméstica como “alguém da família”.

Políticos de extrema direita não chegam ao poder apenas por que surfaram na crise política e econômica e pelo discurso antissistema. Eles também representam e protegem a parte mais rica que acredita que o Estado existe apenas para servi-la. Sim, na visão de parte de nossa elite, a igualdade de direitos é um discurso fofo de marketing que se dobra às suas necessidades individuais.

Como já disse aqui, a desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.

Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.

A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascensão social, mitificada. Assim, o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.

Ou seja, o desejo não é um país em que os donos de Porsche obedecem às mesmas regras do que os donos de Uno. O desejo é ter um Porsche.

Originalmente publicado no UOL
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