Está em cartaz nos cinemas o documentário “Morcego Negro”. Um belo trabalho de pesquisa, montagem e direção sobre um dos personagens e um período tenebroso da história do Brasil pós ditadura. Com direção de Chaim Litewski e Cleisson Vidal, o filme aborda a biografia de Paulo César Farias, o famoso PC Farias, lobista da campanha do “Caçador de marajás” — segundo a Veja — Fernando Collor De Mello.
“A pesquisa teve a pretensão de esgotar o tema. Nem tudo cabe em um filme, mas fomos fundo em busca de analisar as dinâmicas nas relações legais e ilegais envolvidas no poder”, afirma Vidal.
O longa-metragem teve sua estreia no Festival É Tudo Verdade em 2023, recebendo menção honrosa. Uma boa oportunidade de reflexão a partir de um retrovisor histórico. Segue entrevista exclusiva com os diretores Chaim Litewski e Cleisson Vidal concedida ao colaborador do DCM Roger Worms.
DCM – Afinal, quem matou PC Farias?
Vidal e Litewski – Os interessados eram muitos. Por exemplo, havia muito dinheiro na mão de terceiros e PC queria retomar as rédeas dos negócios. O processo de análise da cena do crime está repleto de falhas. Se há falha no início, então todo o processo fica em dúvida. Dezessete anos depois, a justiça deu um veredito: houve um duplo homicídio sem definição da autoria. Essa pergunta seguirá pairando no imaginário.
DCM – Quando se iniciou a pesquisa para o documentário? Houve algum entrave ou limitação legal no início do projeto?
Vidal e Litewski – A pesquisa foi iniciada a partir de 2011, quando começamos a buscar documentação oficial, materiais de arquivo e iconográficos e iniciamos os primeiros contatos com possíveis entrevistados. Tivemos problemas para registrar o projeto junto à Ancine, que exigia permissão da família de PC Farias para que o projeto fosse aprovado. Recorremos à Procuradoria, que reconheceu a história de PC Farias e seus envolvimentos políticos e tirava a necessidade de autorização familiar.
Esse processo de aprovação demorou quase dois anos. Em 2017, através do edital Brasil-Itália, fomos contemplados pelo Direzione Generale per il Cinema do Ministério da Cultura italiano com um prêmio de desenvolvimento de roteiro. Aí então começa efetivamente a produção do documentário, já que esse prêmio nos permitiu filmar na Itália e Suíça. Com o decorrer do tempo, outros parceiros foram surgindo, o que nos permitiu filmar no Brasil e adquirir materiais de arquivo de várias fontes. Então, efetivamente o período de produção, edição, pós-produção e finalização do documentário se dá entre 2018 a 2022.
DCM – O Brasil é uma ópera bufa estagnada e piorada, regida pelos mesmos canastrões?
Vidal e Litewski– Podemos tomar como exemplo as palavras de Bolsonaro no impeachment de Collor e no de Dilma. No primeiro ele diz que vota “sim” em nome dos militares, “que também são povo”. Já no de Dilma, ele vota “sim” em nome da tortura, em nome do apagamento histórico, em nome da manutenção das injustiças. E, infelizmente, os finais nunca são felizes. Aqui no Brasil vivemos, na vida real, parafraseando um conhecido programa de TV, um “Não vale a pena ver de novo”. Não é por coincidência que abrimos e fechamos o filme com uma ópera. A história recente do Brasil pode – e deve – ser contada como um folhetim, em que os elementos dramáticos – família, sexo, politica, crime, traição, pobreza, riqueza, morte e redenção – são extremamente parecidos.
DCM- Paulo César Farias seria um personagem palatável para as redes sociais nos dias de hoje?
Vidal e Litewski- Possivelmente, sim. Apesar da existência da “Lei de Gerson”, a corrupção foi, definitivamente, “humanizada” no nosso país. Os escândalos são tantos e tão frequentes que a população está quase que anestesiada, tornando-se assim muito difícil conseguir acompanhar os lentos processos de investigação – se e quando esses processos investigativos ocorrem – fazendo com que, geralmente, o crime, definitivamente, compense no Brasil. Por outro lado, o “esperto”, o “malandro” – e, porque não, o “corrupto” – passou a ser visto quase como um “herói folclórico”, alguém a quem invejamos (e não desprezamos). Quem “se dá bem” é admirado e cortejado, servindo de exemplo para resto da população, que, invariavelmente, se dá mal.
DCM – Houve uma tentativa de “humanizar o personagem”? PC Farias foi o boi de piranha necessário para se jogar embaixo do tapete as falcatruas e acordos das elites políticas e econômicas?
Vidal e Litewski– Nesses grandes escândalos, a ideia é sempre “personalizar” o “culpado”, isto é, ao invés de condenar o sistema, que permite esse tipo de ocorrência aconteça com uma frequência alucinante, responsabiliza/individualiza sempre uma só pessoa – ao invés de corruptores e corruptíveis – para que o sistema continue funcionando sempre da mesma forma e para que a manada possa passar, incólume. Desse modo, o documentário necessariamente deve buscar compreender qual era o jogo daquele momento e não cair no moralismo. Senão, seria apenas uma repetição. É preciso ampliar a análise.
DCM – Fernando Collor reclama que estavam transformando PC em santo. Xico Sá nos remete às sagas fratricidas de Shakespeare. Como foi costurar esse momento tão surreal da história brasileira?
Vidal e Litewski – O épico conflito público entre os irmãos Fernando e Pedro Collor remete às sagas fratricidas que começam no Velho Testamento, exemplificado por Caim e Abel, chegando aos dias de hoje com, por exemplo, as cantoras sertanejas Simone e Simaria. O significado da palavra é tão forte que ela se tornou sinônimo de “guerra civil”. O Rei Lear, de Shakespeare, é considerado um clássico na história do fratricídio. O drama da briga entre irmãos (ou irmãs) é certamente recorrente nos folhetins, melodramas e nas tragédias.
Como também é a “santificação” do pecador, que se transforma, depois de morto, em inocente. Esse elemento dramático faz parte, desde sempre, de um processo de esquecimento e perdão, que são tão comuns na nossa cultura e folclore. Foi bastante fácil situar PC Farias como alguém que, comparado com os “pecadores de hoje em dia”, como frisou o ex-presidente Fernando Collor, foi um santo. Mas esse é um comentário dele. O bom entendedor sempre pergunta de onde vem a mensagem.