O governo deixou de arrecadar R$ 4,3 bilhões em impostos ao longo de nove anos graças a incentivos tributários concedidos à Coca-Cola. Uma investigação inédita do Joio, em parceria com a Fiquem Sabendo, mostra que esse valor corresponde a apenas uma entre várias modalidades de incentivos que fazem do Brasil um lugar estratégico para a corporação.
Este valor diz respeito à redução de 75% no imposto de renda sobre os lucros da Recofarma, unidade do sistema Coca-Coca que fabrica os concentrados, a principal matéria-prima para a produção de refrigerantes.
É a primeira vez que se tem acesso a esses dados, obtidos via Lei de Acesso à Informação e após meses de idas e vindas de nossos pedidos no Ministério da Fazenda e na Receita Federal. Até então, os pedidos eram negados com o argumento do sigilo fiscal.
Localizada no distrito industrial na capital do Amazonas, a Recofarma goza de uma série de benefícios previstos na Zona Franca de Manaus (ZFM), um regime especial de tributação criado na década de 70. E que foi mantido pela reforma aprovada no governo Lula, a despeito do que propunha o projeto original.
O volume de impostos que a corporação deixa de pagar no Brasil pode ser ainda maior, pois este valor não inclui outros tributos que fazem parte do pacote de vantagens, nem a devolução de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cobrados pelas envasadoras ao comprar o concentrado, manobra sobre a qual falaremos adiante.
Em meio ao processo de negociação política para a aprovação da reforma tributária, a Controladoria Geral da União (CGU) resolveu divulgar o quanto cada empresa poupou em impostos no ano de 2021. Essas informações agora estão disponíveis no Portal da Transparência.
O levantamento solicitado por Joio e Fiquem Sabendo engloba um período maior, entre 2014 e 2022. Em nove anos, o valor poupado pela Coca apenas em imposto de renda mais do que triplicou. O montante mais alto foi registrado em 2022, quando chegou a R$ 860 milhões. Ou seja, quanto mais o mundo se preocupa com a explosão do índice de doenças crônicas (como diabetes, hipertensão e câncer), maior o benefício concedido a um produto-símbolo do problema que, em grande medida, desemboca no SUS e onera duplamente os cofres públicos.
Gasto tributário é quando o governo abre mão de cobrar tributos, ou seja, é um gasto indireto. Em geral, se justifica quando a intenção é estimular um determinado setor da economia, uma região ou mediante algum objetivo social. Deveriam, portanto, ser tornados públicos.
R$ 4,3 bilhões pode parecer um número abstrato e, de fato, é para a grande maioria de nós.
Este valor seria suficiente para multiplicar por seis o montante destinado pelo governo federal na prevenção à obesidade. O Ministério da Saúde investiu R$ 635,8 milhões em ações com esse objetivo ao longo de dez anos.
Também seria possível dobrar os recursos concedidos pelo Fundo de Desenvolvimento da Amazônia, voltado a projetos de infraestrutura na região. Seis projetos diferentes de geração e transmissão de energia no Amazonas e no Pará consumiram, via Fundo, R$ 1,8 bilhão – menos da metade dos recursos que a Coca-Cola deixou de pagar no mesmo período.
Capacidade notável de contornar tributos
A política tributária vigente na Zona Franca de Manaus é diferente do restante do país, com uma série de vantagens em impostos federais, estaduais e municipais. Foi criada no final dos anos 70 como parte do projeto de integração nacional promovido pela ditadura militar.
A ideia era atrair empresas e gerar emprego e renda, compensando a distância dos principais centros produtores e consumidores no país.
A Coca-Cola foi uma das primeiras a chegar na região, em 1970.
Para o setor de bebidas não alcoólicas, o pacote inclui redução no Imposto de Renda, alíquotas zeradas de PIS e Cofins e isenção do IPI. Há ainda abatimento de ICMS, o tributo estadual sobre a circulação de mercadorias e serviços, e outros incentivos no âmbito municipal.
O gasto tributário, ou seja, o dinheiro que o poder público deixa de arrecadar, com a Coca-Cola é ainda maior do que os benefícios diretos da ZFM e inclui também incentivos concedidos pelos estados onde estão as envasadoras.
Gasto tributário é quando o governo abre mão de cobrar tributos, ou seja, é um gasto indireto. Em geral, se justifica quando a intenção é estimular um determinado setor da economia, uma região ou mediante algum objetivo social. Deveriam, portanto, ser tornados públicos.
Por trás do gigantismo de uma corporação como a Coca-Cola, há uma capacidade notável de contornar tributos. E de incidir sobre o debate público e o ambiente político. Na Bahia, por exemplo, mostramos que só em ICMS a Coca poupou R$ 540 milhões em isenções ao longo de dez anos.
Assim como a permanência na ZFM, a manutenção do modus operandi tributário das envasadoras é fundamental para a maior fabricante de refrigerantes do mundo.
No jargão corporativo, trata-se de um esquema em que a Coca-Cola ganha-ganha e a sociedade brasileira perde-perde.
A Receita Federal contesta desde os anos 90 o uso de uma manobra tributária. A Constituição de 1988 permite cobrar créditos entre uma etapa e outra de distribuição como uma forma de evitar impostos em cascata. Assim, por exemplo, uma marca de roupa pode fazer jus a um crédito calculado pela diferença de tributação entre a peça acabada e as matérias-primas, como tecidos e linhas.
No caso da Zona Franca, as engarrafadoras não recolhem IPI, mas cobram os créditos como se recolhessem. Isso explica por que as empresas de refrigerantes sediadas na ZFM lutam para manter esse tributo e com a alíquota mais alta possível. Como mostramos desde 2017, o setor de refrigerantes chegou a representar uma arrecadação negativa para o governo, ou seja, quanto mais desse produto se vende, maior é o rombo no orçamento público.
“Apoiamos a reforma tributária, mas apoiamos uma reforma que não seja discriminatória, que não eleve a carga tributária e que preserve o modelo de valorização e empregabilidade da Amazônia, a Zona Franca de Manaus”, defendeu, em artigo de opinião, Victor Bicca Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola.
No restante do Brasil, todos esses impostos deixarão de existir em alguns anos, mas o regime diferenciado da Zona Franca foi mantido, após muita pressão de parlamentares do Amazonas e dos setores econômicos envolvidos.
O texto aprovado na reforma tributária prevê a extinção do IPI, com a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) a partir de 2027.
A exceção é para os produtos similares aos que são fabricados no Polo Industrial de Manaus. Ou seja, a discriminação de fato, do ponto de vista fiscal, foi mantida para quem fabrica esses mesmos produtos fora da Zona Franca.
Estes seguirão pagando IPI e arcando com um custo tributário bem maior.
É o caso das fabricantes nacionais de refrigerantes. “No Brasil inteiro hoje você vai a um supermercado, você só encontrará Coca e Ambev. Somando as duas, passam de 80% do mercado de bebidas no Brasil. Isso por si só já é um problema, mas é um programa mercadológico”, explica Fernando Rodrigues de Bairros, presidente da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras). De fato, em um documento de 2018, a Receita alertou que as empresas sediadas na Zona Franca vinham usando os créditos indevidos como uma forma de minar concorrentes.
“Isso se agrava quando os impostos não são neutros para a concorrência. Você tem barreiras de entrada e não consegue empreender. A tributação na composição dos preços finais prejudica ainda mais a situação das indústrias nacionais. Por que a tributação hoje não é neutra? Quando você olha pelo lado social, você tem o lado social através da Coca e da Ambev? Não tem porque eles não recolheram os impostos”, critica.
A Afrebras representa marcas pequenas e nacionais, como fabricantes de tubaínas, guaranás e sodas. Em geral, são marcas conhecidas regionalmente que enfrentam o duopólio de corporações e, por vezes, difíceis de encontrar. A grande maioria são empresas familiares e de pequeno porte que, por terem processos de produção menos mecanizados e mais artesanais, geram mais empregos, segundo Bairros.
Zona Franca e a reforma tributária
Para muitos, a manutenção da Zona Franca mesmo após as discussões da reforma tributária carece de sentido e está defasada frente aos desafios atuais da região. A continuidade dos refrigerantes nesse sistema é algo ainda mais difícil de defender: um setor que emprega pouco em comparação com outras indústrias instaladas em Manaus.
Vamos pegar 2021 como exemplo. Como mostra nossa investigação, a Recofarma obteve R$ 716 milhões de incentivos apenas em tributos federais naquele ano.
O setor de bebidas na Zona Franca gastou naquele ano R$ 7,2 milhões com a folha salarial, segundo dados da Superintendência da Zona Franca de Manaus, a Suframa.
Ou seja, o valor pago aos trabalhadores por todas as empresas do setor de bebidas na Zona Franca naquele ano representou 1% do montante poupado pela Coca-Cola apenas em tributos federais diretamente incentivados. Sem contar os créditos de IPI.
O faturamento do setor de bebidas aumenta, enquanto o gasto com salários e o número de empregados diminuiu entre 2018 e 2023, segundo dados da Suframa.
Em 2023, quando a produção de concentrados teve o melhor desempenho em seis anos, o faturamento de R$ 1,3 bilhão não representou nem mesmo 1% do total produzido por todos os setores industriais que estão na Zona Franca de Manaus. Para efeito de comparação, a fabricação de eletroeletrônicos emprega cerca de 35 mil pessoas e responde por quase um quarto do faturamento do polo industrial.
Segundo o dado mais atualizado disponibilizado pela Suframa, são 17 empresas registradas no setor de bebidas não alcoólicas. Coca-Cola e Ambev são, de longe, as que mais se beneficiam deste regime, pelo tamanho e pela capacidade de concentração de mercado.
A Heineken, que ficou com o portfólio de bebidas não alcoólicas da Schincariol, deixou Manaus em 2022. A fábrica àquela altura empregava apenas 18 funcionários. A Pepsico fez o mesmo movimento, alguns anos antes, em meio à tentativa frustrada do governo de Michel Temer em aumentar a arrecadação do setor. A Coca-Cola chegou a ameaçar deixar o Brasil.
A Recofarma é a terceira maior fábrica de concentrados da Coca-Cola no mundo. Produz cerca de 50 mil toneladas, que vão abastecer os mercados da Colômbia, Venezuela, Paraguai, Uruguai e Bolívia, gerando “mais de 12 bilhões de litros de bebidas final para os consumidores do Brasil e da América Latina”, informou a empresa, em texto comemorativo aos 30 anos da instalação da fábrica em Manaus.
Além de ser o quarto maior mercado em todo o mundo, o Brasil funciona como uma espécie de plataforma de vantagens e créditos fiscais.
Isso explica a fortíssima movimentação das entidades setoriais para fazer valer os interesses de corporações de bebidas e ultraprocessados durante a votação da reforma tributária. E que volta a se intensificar agora, na fase de regulamentação, diante da iminência da criação de um imposto seletivo sobre bebidas adoçadas e ultraprocessados.
Por ora, há mais perguntas do que resposta. O mesmo texto que manteve o regime de incentivos na Zona Franca prevê taxar a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”.
Não se sabe se, caso o imposto seletivo incida sobre refrigerantes, a cobrança de IPI sobre o concentrado será mantida. Ou se coexistiriam, já que um tributo incide sobre o insumo e o outro, sobre o produto final. Também não é possível saber se o Imposto Seletivo permitirá a geração de créditos.
Em nota, o Ministério da Fazenda informou que instituiu “o Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo (PAT-RTC) e se posicionará acerca dos questionamentos pertinentes à regulamentação da reforma após o término dos trabalhos realizados no âmbito do programa, previsto para o fim de março”.
A proposta de regulamentação da reforma tributária será enviada ao Congresso na próxima semana. Enquanto isso, é cada vez maior a pressão, dentro do governo e também fora dele, para que produtos ultraprocessados sejam taxados com o imposto seletivo. E crescem também as evidências que associam o consumo de refrigerantes a desfechos negativos de saúde, inclusive entre crianças e adolescentes.
Pode ser uma oportunidade única para o Brasil corrigir esta e outras distorções tributárias que favorecem esses produtos e os tornam mais acessíveis do que os alimentos saudáveis. Resta saber quais interesses vão pesar mais no voto dos parlamentares: os da sociedade ou das corporações?
Publicado originalmente em O Joio e O Trigo