Para advogados, CNJ revelou projeto de poder e extensão da ‘lava jato’

Atualizado em 16 de abril de 2024 às 18:17
Juíza Gabriela Hardt. Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press/Estadão Conteúdo

 

A decisão do corregedor-nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, de afastar juízes de duas instâncias como resultado da correição promovida pelo CNJ na 13ª Vara Federal de Curitiba e no Tribunal Regional Federal da 4ª Região mostra que a falecida “lava jato” tinha muitos tentáculos e um projeto de poder, de acordo com os advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Nesta segunda-feira (15/4), Salomão afastou de suas funções os desembargadores do TRF-4 Carlos Eduardo Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, a juíza Gabriela Hardt e o juiz Danilo Pereira Júnior, que atuaram na 13ª Vara de Curitiba.

Na decisão, Salomão afirmou que os fatos apontados na correição são graves, como o “atípico direcionamento dos recursos obtidos a partir da homologação de acordos de colaboração e de leniência exclusivamente para a Petrobras” e a “discussão prévia” de Hardt em um aplicativo de mensagens, antecipando sua decisão.

O ex-juiz e senador Sergio Moro (União Brasil-PR) também é parte em uma das reclamações disciplinares, mas, segundo o documento assinado por Salomão, seu caso “será tratado no mérito, quando do exame da questão pelo Plenário do CNJ, dado que não há nenhuma providência cautelar a ser adotada no campo administrativo”.

Projeto de poder

Para Aury Lopes Jr., a correição e a decisão de Salomão ajudam a revelar a estrutura paralela ilegal montada durante a “lava jato”, que por anos foi “denunciada por advogados”, a quem ninguém “dava ouvidos”.

“O dark side da ‘lava jato’ não foi só o conluio entre MPF e juiz, o consórcio de justiceiros, não foi só a ‘equipe Moro’ e a sistemática violação do devido processo penal, o abuso das prisões preventivas para tortura e as delações premiadas extorquidas. Também havia um projeto de poder muito complexo, uma arrogância e um sentimento de que ‘tudo podemos porque estamos passando o país a limpo’, porque temos a opinião pública e publicada ao nosso lado”, diz o advogado.

De acordo com ele, as críticas à “lava jato” foram ignoradas porque o país ficou sedado pelo “bizarro espetáculo midiático” em torno das investigações. Ainda segundo o advogado, a ideia do MPF de criar uma fundação para gerir bilhões precisa ser muito bem investigada.

“Esse projeto da ‘fundação’ precisa ser muito bem investigado, juntamente com a relação incestuosa entre a equipe Moro (MPF junto com juiz) e as ‘cooperações internacionais informais’ — ou seja, ilegais — com os Estados Unidos e a Suíça. É preciso que o Poder Judiciário faça uma anamnese séria de tudo isso e que, junto com a grande mídia, faça o mea culpa e amadureça, para que absurdos assim não se repitam e que não sejamos mais vítimas de salvacionistas e justiceiros.”

‘Há muita coisa por apurar’

Segundo o advogado e professor Lenio Streck, a decisão de Salomão ajuda a restaurar a credibilidade do Judiciário após os abusos da “lava jato”. Ele, no entanto, alerta: “Ainda há muita coisa por apurar”.

“Não é surpresa para quem, como eu, denunciou os vários bypass praticados na operação. Sentenças no recorta e cola, decisões protocoladas dois minutos depois de o advogado anexar a defesa, condenações sem provas, desobediência a decisões do STF, dinheiro mal administrado na 13ª Vara, atos autoritários”, listou ele.

Streck entende que o CNJ deve punir aqueles que “pularam a barca” para enfrentar a difícil missão de restaurar a credibilidade do Judiciário. “A ‘lava jato’ se notabilizou por atirar a flecha e depois pintar o alvo. Não erravam nunca. Agora foram pegos. Há muita coisa por apurar.”

Deltan Dallagnol e Sergio Moro. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Desvio

No relatório de apoio à correição na 13ª Vara de Curitiba, o delegado da Polícia Federal Élzio Vicente da Silva afirma que Sergio Moro, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol e Hardt agiram em conluio para desviar R$ 2,5 bilhões dos valores oriundos da “lava jato” para criar uma fundação privada.

No período entre 2016 e 2019, diz o delegado no documento, Moro, Hardt e Dallagnol, além de outros procuradores da autodenominada força-tarefa, “atuaram para promover o desvio, por meio de um conjunto de atos comissivos e omissivos e com auxílio de agentes públicos americanos e dos gerentes da Petrobras Taísa Oliveira Maciel, Carlos Rafael Lima Macedo, e representantes da Petrobras não especificados, de R$ 2.567.756.592,009 destinados originalmente ao Estado brasileiro, para criação de uma fundação voltada ao atendimento a interesses privados”.

A pretensão dos procuradores e dos outros atores envolvidos na história caiu por terra após a Procuradoria-Geral da República — à época comandada por Raquel Dodge — ajuizar ação de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, que suspendeu o acordo e, consequentemente, arruinou os planos da fundação.

‘Escândalo’

Para Pedro Serrano, o caso é “factualmente um escândalo” e justifica o afastamento dos magistrados.

“Creio que os afastamentos foram corretos porque os indícios são muito graves, precisam ser apurados, e a melhor forma de apurar é afastar para possibilitar uma apuração mais isenta e imune a interferências”, disse ele. “O caso dos R$ 2,5 bilhões me parece factualmente um imenso escândalo. É preciso agora apurar o eventual envolvimento das autoridades e qual a extensão desse envolvimento. Mas o fato em si parece escandaloso.”
No entendimento do advogado e cientista político Fernando Fernandes, a decisão mais uma vez mostra como funcionava o conluio entre juízes e integrantes do Ministério Público Federal de Curitiba.

“A decisão que afasta a juíza e aponta o conluio de Moro ratifica essa promíscua relação do que Gilmar Mendes chamou de ‘estamento de Curitiba’, a Stasi que tentou aplicar o ‘ código do russo’ subvertendo nossa Constituição.”
Esqueletos no relatório

O relatório final da correição na 13ª Vara mostrou que não foi feito inventário para indicar onde foram guardados todos os itens apreendidos pela “lava jato”, como obras de arte, e não foi possível identificar uma série de bens e recursos, entre eles os confiscados no exterior.

O resultado parcial do trabalho do CNJ, divulgado em agosto de 2023, já demonstrava a bagunça da 13ª Vara. A conclusão é que houve uma “gestão caótica” no controle de valores oriundos de acordos de colaboração e de leniência firmados com o Ministério Público e homologados por Sergio Moro.

Por meio desses acordos, o grupo de procuradores da “lava jato” recolheu e repassou à Petrobras R$ 2,1 bilhões entre 2015 e 2018, com autorização da 13ª Vara Federal, a título de ressarcimento pelos desvios praticados.

Esses valores permitiram à Petrobras, que era investigada por autoridades americanas, firmar acordo no exterior, segundo o qual o dinheiro que seria devido fora do Brasil acabaria investido na criação de uma fundação com o objetivo de organizar atividades anticorrupção.

Um outro levantamento, feito pelo Tribunal de Contas da União, identificou irregularidades na destinação de valores obtidos em acordos de leniência na ordem de R$ 22 bilhões. Segundo o TCU, o dinheiro foi movimentado sem que houvesse qualquer preocupação com transparência.

Em julgamento de setembro passado, o ministro Bruno Dantas, presidente do TCU, lembrou a tentativa da “lava jato” de Curitiba de criar um fundo bilionário com dinheiro da Petrobras, a ser administrado pelos próprios procuradores, para investir no que chamavam de “projetos de combate à corrupção”. Também disse que o TCU deve frear a transferência de patrimônio do Estado para viabilizar interesses de agentes públicos.

“A grande verdade é que nós temos promotores e procuradores espalhados pelo Brasil que viraram verdadeiros gestores públicos. E o pior: sem a responsabilidade que os gestores públicos têm. O que está acontecendo é a transferência de patrimônio do Estado brasileiro para a gestão de agentes da lei. É disso que nós estamos tratando nesta tarde”, disse Dantas na ocasião.

Publicado originalmente no “ConJur”

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