(…) Como está sua rotina?
Agora tenho que me tratar. A única opção que tenho é um tratamento com radioterapia, que tenho que cumprir todos os dias durante umas 30 sessões consecutivas. Estou na segunda. Amanhã, a terceira.
Como foram as duas primeiras?
Não sinto nada. Me dizem que quando chegar a 15 ou 20 posso sentir algo. Mas, por enquanto, nada. Dentro da desgraça tive relativamente sorte, porque a análise celular mostra que há duas variáveis de tecido, e a que me afetou é a mais sensível à radiação. Não tenho metástase. [O tumor] está localizado em um lugar que não atravessou a parede do esôfago, e, bem, segundo eles é controlável e até erradicável. Veremos.
Dos problemas que tive na juventude, perdi um pulmão. Isso criou mais espaço para o coração, que está inclinado para a esquerda, o que favorece o tratamento. (…)
(…) Como referência política da região, como avalia a situação da esquerda na América Latina?
Em geral, há uma visão muito de curto prazo no uso desses termos. Esquerda e direita são termos cunhados com a história da Revolução Francesa, simplesmente por onde se sentavam no banco. Mas eu tenho uma interpretação muito mais antropológica.
São tendências que existiram sempre ao longo da história humana. Sempre houve uma face renovadora e progressista e uma face conservadora, como as faces de uma moeda. Talvez o gênero humano em seu devir precise das duas coisas. E ambas têm problemas: a progressista tende a confundir seus desejos com a realidade, e a isso chamamos de infantilismo. E a face conservadora tende a cair no reacionário (que não é o mesmo que conservador).
Agora, contemporaneamente, a esquerda está em uma crise de ideias porque esteve muito nutrida de 1950 a 1960 por um modelo racional que inventou um homem ideológico. E não teve em conta que os seres humanos são animais emocionais. E hoje está precisando recriar um novo arsenal de ideias que se encaixem mais com uma visão mais biológica do que é o homem. Agora estamos com outro desafio.
Nós somos animais sociais, não podemos viver sozinhos. E esse caráter gregário foi o que nos fez progredir. Aprendemos a caçar em grupo, nos movemos em grupo. A tal ponto que, em toda aldeia primitiva, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso da comunidade. Somos humanamente dependentes dos outros, e então andamos com essa contradição: precisamos da sociedade, mas somos indivíduos e temos essa cota de egoísmo. Este é o papel da política: tem que lutar para sobreviver na sociedade.
Como as gerações que vêm resolverão isso? Não sei.
Quais ideias fazem parte dessa nova visão da esquerda?
Acredito que agora estejamos em um tempo meio de impasse. Com um progresso técnico fantástico e com muita gente infeliz. Há muitos com problemas com angústia, com a necessidade de ir a um psicólogo. Qual é o sentido do progresso econômico se não sentimos felicidade em viver? Este é o desafio que temos pela frente. Estou prestes a completar 90 anos…(…)
(…) Sobre o Brasil, como o sr. avalia o governo Lula?
Acredito que ele tenha ganhado as eleições porque era o Lula. Senão, Bolsonaro teria continuado. Lula teve que fazer concessões e uma aliança para o centro, muito forte, para tentar unir tudo o que era um espaço mais ou menos democrático para frear a extrema direita. Naturalmente isso vai ter efeitos. Não acredito que Lula possa fazer um governo muito radical à esquerda. Este será um governo moderado. E ele sempre foi muito moderado. Ele propunha uma revolução…
Propunha uma revolução?
Sim, que as pessoas pudessem comer três vezes ao dia. Para quem não tem comida, isso é uma revolução. Para quem sonha com a revolução, é pouco.
O Brasil assumiu responsabilidades no mundo. É evidente que no cenário internacional é respeitado. E não se surpreenda se, no segundo semestre, quando houver uma reunião em Nova York convocada pelo secretário-geral da ONU para reformá-la, uma dessas mudanças for a proposta de que o Brasil entre no Conselho de Segurança como membro permanente.
Como o sr. vê a dificuldade da esquerda no Brasil de renovar seus quadros?
Tenho a mesma preocupação. E depois de Lula? Este é um desafio que o Brasil e toda a nossa América têm, dada a importância do Brasil. (…)
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