Porto Alegre não deve copiar o mau exemplo de New Orleans. Por Marina Amaral

Atualizado em 19 de maio de 2024 às 21:03
Fachada do Mercado Público de Porto Alegre (RS) inundada devido às fortes chuvas no estado gaúcho. Foto: Giulian Serafim/PMPA

Publicado originalmente na Agência Pública

Marina Amaral

Leio aqui e ali que a New Orleans pós-Katrina “traz lições” para Porto Alegre. No mesmo tom, noticia-se que o prefeito Sebastião Melo (MDB) contratou uma consultoria norte-americana “que atuou no Katrina” para fazer o plano de reconstrução da capital gaúcha. Ele ainda não sabe nem o quanto isso vai custar: a consultoria Alvarez & Marsal (A&M) ofereceu dois meses de trabalho gratuito antes de apresentar a conta para a prefeitura. No Brasil, a A&M é conhecida por empregar o ex-juiz Sergio Moro, depois de lucrar R$ 65 milhões como administradora judicial de empresas alvo da Lava Jato.

“No momento, a equipe concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura, apresentará cronograma para implementação”, disse a A&M em nota publicada na Folha de S.Paulo. Quando indagado por que, afinal, havia decidido contratar a empresa, o prefeito simplesmente respondeu: “Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir”.

Para além da aparente falta de critérios na decisão tomada, sem ouvir os especialistas brasileiros, como revelou o site Matinal, Melo parece desconhecer a desastrosa atuação da A&M em New Orleans que deixou como legado a demissão de mais de 7 mil professores de escolas públicas, a privatização da educação e saúde, o acirramento da violência policial e miliciana (o que ameaça acontecer por aqui) e, por fim, o branqueamento da população de New Orleans.

A pretexto de retirar os desalojados, que foram impedidos de voltar, foi feita uma limpeza étnica na cidade turística, e a população negra, que correspondia a dois terços da população total, caiu para menos da metade cinco anos depois da inundação que se seguiu ao furacão Katrina e deixou mais de 1.300 mortos no desastre.

Até hoje a população original de New Orleans não se recuperou – há cerca de 100 mil habitantes a menos dos quase 500 mil que havia em 2005. Já a população negra, somando os que conseguiram por fim voltar, corresponde a 60% do total, boa parte dela concentrada na periferia depois de perder suas casas em bairros gentrificados na reconstrução. Muitos ainda lutam para pagar dívidas com moradia.

Enchente em área residencial de New Orleans, nos Estados Unidos, após a passagem do furacão Katrina. Foto: Vincent Laforet /AFP PHOTO/POO

Para saber o que aconteceu em New Orleans, e aprender com suas falhas – estas, sim, lições para nós, como notou a BBC –, o prefeito pode aproveitar que a energia foi restabelecida no Guarujá, o bairro onde mora, e assistir a Tremé, ótima série de David Simon (o mesmo criador de The Wire) que mostra a resiliência da cultura negra e os absurdos e injustiças cometidas na reconstrução de New Orleans com forte viés de racismo, principalmente por parte do governo federal de George W. Bush.

Tremé é o nome de um bairro negro em New Orleans, berço do jazz e de tradições afro-americanas e creole da Louisiana, que foi um dos mais atingidos pela inundação. A série começa três meses depois do Katrina e acompanha a reconstrução marcada pelo lobby das empreiteiras e a corrupção das autoridades, ligados à desigualdade de tratamento a atingidos negros e brancos.

Como acontece em Porto Alegre: embora quase a cidade toda tenha sido atingida pelas águas, é a população de baixa renda que mais sofre com as consequências, sendo a grande maioria nos abrigos e também entre os que não terão onde morar, como reconheceu o próprio prefeito na mesma entrevista à Folha.

Um levantamento feito pelo Observatório das Metrópoles mostra que os bairros pobres foram os mais atingidos na capital e na região metropolitana. “Nem todos os bairros mais pobres foram atingidos, mas todos os mais atingidos são pobres”, explicou o pesquisador André Augustin ao site Sul 21.

Há outras semelhanças mórbidas entre as duas cidades diante do desastre – “que não foi natural, mas provocado por gigantescas falhas humanas”, como gosta de repetir um personagem de Tremé, o professor de inglês Craig Bernette, que usa o YouTube para fazer denúncias contra as autoridades. É Bernette quem enuncia a verdade calada até então: o que provocou a tragédia em New Orleans não foi o furacão Katrina, mas a enchente que se seguiu por causa do rompimento dos diques por erros de engenharia e manutenção.

As falhas no sistema de prevenção de enchentes em Porto Alegre, de responsabilidade da prefeitura, e criticadas pelo presidente Lula, certamente também desempenharam um papel relevante na tragédia brasileira. Lá como cá, também houve demora para acordar para a emergência climática com políticas públicas eficazes e o afrouxamento na legislação ambiental em plano estadual e federal. Não precisamos copiar mais fracassos.

Aliás, vale lembrar ao prefeito Sebastião Melo que seu colega em New Orleans, Ray Nagin, foi condenado em 2014 a dez anos de prisão por corrupção, propina e lavagem de dinheiro na gestão da reconstrução. A sentença expirou em março deste ano e ele agora luta para reaver o direito de votar e, pasmem, de portar armas.

Definitivamente, não precisamos desses exemplos.

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