Por André Borges
Na manhã do dia 30 de abril, um grupo de empresários, pesquisadores, produtores rurais e representantes de associações do agronegócio se aboletou no auditório da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, para discutir as relações comerciais entre o Brasil e a China. O foco do debate eram as exportações de soja e carne para o gigante asiático e as possíveis – ou necessárias – “rotas para a sustentabilidade” que precisam ser adotadas.
Feita a abertura do evento, que foi apoiado pela organização The Nature Conservancy (TNC), o diretor do Centro Internacional para o Desenvolvimento Agrícola e Rural da China, Kevin Chen, foi ao púlpito e, em minutos, tratou de dar o papo reto sobre como os chineses têm enxergado o cenário atual e futuro com seu maior parceiro alimentar do planeta.
“Sabemos que as mudanças climáticas já levaram a uma redução na produção de soja no Brasil e, também, a uma diminuição nas exportações de soja. A China, como principal importador do Brasil, já percebeu essa redução”, disse Kevin Chen.
Os representantes do agro, setor que, muitas vezes, é marcado por visões negacionistas sobre as mudanças climáticas e seus impactos na produção, ouviam atentos. Kevin Chen citou, então, dados sobre o crescimento exponencial da venda de carne e soja brasileira para a China nos últimos anos. A relevância que saltava dos gráficos, porém, sempre vinha sublinhada por uma preocupação externada pelo pesquisador sênior na Unidade de Estratégias de Desenvolvimento e Governança da China, sediada em Pequim.
De forma direta e clara, Kevin Chen afirmou que a China está incomodada com a forte dependência que passou a ter da produção brasileira, para alimentar boa parte de seus 1,4 bilhão de habitantes. “Hoje, 80% da soja consumida pela China (insumo que, basicamente, é usado para produzir ração animal) vem de outros países, sendo o Brasil nosso maior fornecedor. Até 2033, porém, mais de 30% de nossa demanda por soja deverá ser atendida pela produção interna”, declarou o chinês, para concluir com uma mensagem direta. “É preciso acabar com o desmatamento no Brasil devido à expansão da produção de soja e carne bovina. Nós esperamos que isso ocorra, sem prejudicar a produção e os meios de subsistência”.
Por trás dos alertas ambientais feitos pelo representante do governo da China e a preocupação com a segurança alimentar de seu povo está o espaço que o Brasil passou a ocupar na mesa da segunda maior economia do mundo, só atrás dos Estados Unidos, atrelada à crescente necessidade de se buscar uma produção que não pressione o desmatamento.
Os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic) mostram que os chineses são, de longe, o maior parceiro comercial do Brasil, respondendo por 31% de tudo que o Brasil vende para o mundo. Os Estados Unidos, que ocupam o segundo lugar no destino das exportações gerais feitas pelo Brasil, ficam com uma fatia de 10,9%. Sozinha, a China responde por um volume de exportação brasileira superior ao dos outros nove maiores compradores do país.
Quando se olha para as commodities agrícolas e minerais, o protagonismo é ainda maior, resultado de um crescimento vertiginoso ocorrido nos últimos anos. Entre 2019 e 2023, as exportações de soja brasileira para a China quase dobraram, saltando de US$ 20,5 bilhões para US$ 39,8 bilhões. No ano passado, os asiáticos responderam por nada menos que 73% da soja exportada pelo Brasil.
Os grãos, somados à carne, petróleo e ferro, puxaram a balança e fizeram com que as exportações para China batessem recorde em 2023, com aumento de 16,5% em valor e quase 30% em volume sobre o ano anterior. No ano passado, a China se tornou o primeiro destino de exportações brasileiras a superar a marca de US$ 100 bilhões. Mais precisamente, foram US$ 104,3 bilhões de vendas para os chineses, mais que o dobro do ocorrido sete anos atrás.
A carne bovina segue o mesmo caminho da soja. As exportações da proteína para a China aumentaram 476% entre 2009 e 2022, conforme os dados compilados pela Associação Brasileira de Exportadores de Carne (Abiec). De cada dez quilos de carne que o Brasil vendeu para o Exterior no ano passado, seis quilos embarcaram para a China, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic).
Quando se olha para o peso do Brasil entre todos os vendedores de produtos para a China, a situação não muda. Hoje, o Brasil responde 60% de toda a soja e 41% da carne bovina que a China compra do mundo. A dependência da carne importada é resultado de mudanças de hábitos alimentares e da urbanização vivida pelo país asiático nas últimas duas décadas. Em 2012, apenas 1% da carne bovina consumida pelos chineses era importada. Em 2022, esse volume já tinha saltado para 27%, de acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas da China. No fim do dia, tudo isso significa, inevitavelmente, uma pressão constante sobre o desmatamento.
Vetores de desmatamento
O gado e a soja lideram, há décadas, o ciclo de degradação da Amazônia, em um processo predatório de exploração dos recursos nacionais, deixando para trás um rastro de destruição sobre o solo degradado. O uso intensivo da terra representou quase 50% das emissões do país em 2022, segundo informações do Observatório do Clima. E a China tem tudo a ver com isso.
A curva de crescimento das exportações das commodities agrícolas para a Ásia é acompanhada, ao longo dos anos, pela expansão das exportações realizadas pelos nove Estados que compõe a Amazônia Legal e, consequentemente, pelas regiões mais desmatadas do país, como mostram os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
O Estado do Mato Grosso, por exemplo, que em 2014 exportou US$ 3,4 bilhões para a China, viu esse volume mais que triplicar em uma década, chegando a US$ 11,8 bilhões no ano passado. No mesmo intervalo de tempo, os embarques feitos pelo Pará ao mercado chinês mais que dobraram, saltando de US$ 4,7 bilhões para 11,2 bilhões.
O fato é que a multiplicação das cifras se deu ao custo de muito desmatamento. De 2014 para 2022, a devastação anual nos nove Estados da Amazônia legal saiu de 5.012 km² para 11.594 km². Na última década, só houve uma redução neste ritmo no ano passado, quando 9.064 km² de desmatamento foram identificados na região.
Se somado o desmatamento ocorrido nos últimos dez anos, o Pará lidera o ranking, com 36.325,00 km² (38,58% do total na região), seguido por Mato Grosso, com 18.024 km² (19,14%), Amazonas, com 14.425 km² (15,32%) e Rondônia, com 13.131 km² (13,95%).
Para especialistas em relações internacionais, porém, essa pressão que a demanda chinesa exerce, ainda que indiretamente, sobre o desmatamento da Amazônia passa por um momento de inflexão. A segurança alimentar da China passou a depender, mais do que nunca, da produção sustentável.
“A China está migrando do papel de um comprador que coloca mais pressão sobre o desmatamento, para um comprador que pode facilitar a existência de cadeias de valor livres de desmatamento”, diz Leonardo Gava, gerente-sênior de transição agrícola da Climate Bonds Initiative, entidade do Reino Unido, sem fins lucrativos, especializada em certificação de títulos sustentáveis. “É um processo lento, mas que está em andamento. Essa pressão pela demanda chinesa, que empurrou a expansão da soja, do milho e outras culturas do Brasil, gerando muito desmatamento, está passando por um ponto de inflexão.”
A questão em aberto, neste momento, segundo especialistas em relações internacionais e pesquisadores das relações comerciais com a China, é saber se o produtor brasileiro estará preparado para essa mudança de perfil num futuro próximo, quando imposições efetivas de controle e compromisso ambientais partirem de seu maior cliente internacional. A máxima de vender cada vez mais segue firme, como sempre, mas está deixando de ser a qualquer preço (ambiental), na tese do custe o que custar.
“Os compradores chineses estão, aos poucos, subindo a régua sobre as mudanças necessárias. A narrativa sobre a questão ambiental já mexeu com o mercado. Imagina quando vier uma eventual imposição”, comenta Leonardo Gava. “O produtor brasileiro tem uma janela para se movimentar, e essa janela está aberta agora. Se ele falhar, terá de correr atrás do prejuízo. Sempre vimos uma China que pressiona o desmatamento, mas hoje começamos a falar, também, em pressão pela preservação, para garantir a segurança alimentar.”
Agro brasileiro não está pronto para mudança de cenário
A China, via de regra, evita se posicionar de forma incisiva sobre questões internas de países, como legislação ambiental e fiscalização. Um conjunto crescente de compromissos multilaterais assumidos pelo país, porém, poderá redundar, em algum momento, em medidas concretas, além de meras diretrizes sobre o modus operandi do agronegócio brasileiro.
“A questão ambiental é um tema mais recente dentro da agenda pública da China, algo de dez a 15 anos para cá, mas veja que isso passou a fazer parte do novo esforço do desenvolvimento pragmático do país”, avalia João Cumarú, mestrando em Política e Diplomacia Chinesa na Sirpa, da Fudan University, na China. “Depois de um intenso processo de industrialização e urbanização, a prioridade do presidente Xi Jinping passou a ser alcançar aquilo que tem sido chamado de construção de uma civilização ecológica.”
O conceito da civilização ecológica, incluído na Constituição da República da China e no planejamento geral de desenvolvimento do país, é visto com grande ceticismo, ainda mais vindo do maior emissor de gases de efeito estufa do planeta desde 2007, se considerados seus números absolutos (os Estados Unidos são o maior emissor per capita). A China é dona de uma matriz elétrica calcada em carvão mineral, fonte que responde por cerca de 60% da geração de energia elétrica.
Uma série de novos compromissos ligados a uma rota sustentável, porém, tem apontado para uma mudança efetiva de postura. Em 2021, o presidente Xi Jinping afirmou que as emissões do país devem atingir seu pico antes de 2030 e que, conforme o plano de transição energética chinês, o país chegará à neutralidade de carbono até 2060.
No ano passado, lembra João Cumarú, Brasil e China comprometeram-se a ampliar, aprofundar e diversificar a cooperação bilateral sobre o clima, durante encontro entre o presidente Lula com Xi Jinping, em Pequim.
“A China está cada vez mais engajada internacionalmente nestas pautas ambientais e há avanços internos efetivos. Fica difícil saber como essas ações se consolidarão nas relações externas, porque a lógica de mercado, preço e volume ainda tem se imposto, além do discurso de não intervir em questões externas. De qualquer forma, é um movimento novo e que pode ter reflexos no Brasil”, diz João Cumarú.
O pesquisador chama a atenção, ainda, para o movimento crescente na China, de diversificar seus vendedores de commodities agrícolas. “Eles estão investindo pesado em tecnologia para desenvolver suas terras, além de buscarem novos fornecedores. É o que estamos vendo com a África, por exemplo. Não sei até onde o produtor brasileiro está ligado nisso.”
Para além de posicionamentos governamentais, há sinais de que a população chinesa também começa a apresentar uma mudança de postura em relação ao meio ambiente. Uma pesquisa realizada neste ano em Pequim e Xangai, pela Academia Chinesa de Ciências Sociais, FGV Agro e TNC aponta que parte dos consumidores chineses de carne bovina aceitaria pagar até 20% a mais no preço da proteína, se tivesse a garantia de que o produto não tem relação com desmatamento e destruição da Amazônia.
Esse dado fica ainda mais relevante se considerado o potencial de crescimento que a carne bovina ainda tem no mercado chines. “O brasileiro, em média, se alimenta de 25 quilos de carne por ano. O chinês come hoje, cinco quilos por ano, por uma questão econômica e cultural também. Imagine o crescimento que pode vir pela frente e como isso pode mexer com o mercado”, diz João Cumarú.
Falta de transparência marca exportações de carne para a China
Um roteiro nebuloso ainda marca o caminho percorrido por boa parte do gado brasileiro, entre o local exato que o animal nasce, em algum dos nove Estados da Amazônia Legal, até sua chegada ao território chines.
Preocupados em não serem acusados de comprar carne de área desmatada ilegalmente, grandes compradores chineses têm procurado, à sua maneira, aprimorar os processos de triagem de seus maiores fornecedores. Há um desarranjo total, porém, quando essa cadeia envolve parceiros terceirizados, que muitas vezes compram gado criados em áreas irregulares e “lavam” a origem desses animais com suas propriedades.
Alarmados com o tema, a Associação de Carne da China (CMA, na sigla em inglês) e a organização World Wildlife Fund (WWF) se uniram em 2017, para criar a “Declaração Chinesa de Carne Sustentável”, com a missão de controlar o desmatamento associado às suas importações. A ideia foi buscar esforços para ter uma produção, comércio e consumo sustentáveis de carne, com “diretrizes” para melhorar a rastreabilidade e transparência na cadeia de suprimentos. Em 2021, foi a vez da comissão emitir a “Especificação para o Comércio Verde da Indústria de Carne”.
“Foram medidas relevantes, sem dúvida, pelo sinal que deram ao mercado, mas o fato é que essas ações não trouxeram uma data conhecida para que esses critérios fossem cobrados”, diz Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto Imazon. “É uma postura diferente da União Europeia, por exemplo, que estabeleceu que não compra mais nada de área com desmatamento ocorrido depois de 2020 e que isso será exigido a partir de janeiro de 2025. Não encontramos nada na China que estabeleça um cronograma.”
O Instituto Imazon e a organização O Mundo Que Queremos juntaram-se para medir o quanto das orientações chinesas têm se convertido, na prática, em uma melhoria no processo sustentável da produção de gado no Brasil. O estudo, batizado de Radar Verde, revela dados preocupantes e mostra que ainda há um vácuo amazônico entre a realidade e as orientações chinesas com produtores brasileiros.
As organizações identificaram 132 mega companhias do setor de carnes operando na Amazônia Legal, sob o Serviço de Inspeção Federal (SIF) e o Serviço de Inspeção Estadual (SIE). Esses grupos detinham 176 frigoríficos na região, respondendo por 96% dos abates realizados nos estados amazônicos em 2022.
Entre os 176 frigoríficos, 72 têm licença para exportar para a China e Hong Kong, sendo este último a principal rota do gado brasileiro usada para chegar ao consumidor chinês. Isso acontece porque as regulamentações, requisitos de inspeção e procedimentos de importação variam entre a China continental e Hong Kong, levando muitos frigoríficos a optarem por se qualificar junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para exportar apenas por meio de Hong Kong.
Os dados do Radar Verde, relata o pesquisador Paulo Barreto, revelam que 87% dos frigoríficos licenciados para exportar para a China assinaram um acordo de desmatamento zero com procuradores federais, ou seja, se comprometeram a boicotar o gado criado em áreas associadas ao corte ilegal de vegetação.
Ocorre que, das 31 empresas licenciadas para exportar somente para a China, 25 operam em regiões com mais de 300 mil hectares de exposição a riscos de desmatamento. Nenhuma dessas empresas, porém, respondeu questionamentos para demonstrar que controlam suas cadeias de suprimentos de carne.
“A realidade é que todas elas estão irregulares com relação às especificações da Associação de Carne da China sobre divulgação de informações e origem de áreas de alto risco de desmatamento”, diz Alexandre Mansur, diretor de projetos do Instituto O Mundo Que Queremos.
A pesquisa também avaliou o grau de transparência que os grupos oferecem em relação a informações divulgadas em seus portais e conteúdo de acesso público. Das empresas licenciadas para exportar para a China, apenas três tinham um nível intermediário de transparência de política de desmatamento zero em seus sites, com algum controle sobre os fornecedores diretos de gado. Elas não cumpriam, porém, a orientação da Associação de Carne da China sobre o controle dos fornecedores intermediários de carne.
O resultado apontou, ainda, que nenhuma empresa publicou políticas para controlar fornecedores indiretos ou não divulgou resultados auditados independentes sobre isso. A conclusão é de que 90% das empresas tinham baixa ou muito baixa transparência em suas políticas.
A situação se agrava mais no caso daqueles que concentram as exportações para Hong Kong, com 94% das empresas qualificadas em situação de baixa ou nenhuma transparência.
Os dados mostram que 53% dos frigoríficos que exportam para Hong Kong chegam a ter um controle muito alto ou alto sobre seus fornecedores diretos, mas nenhum demonstrou controle sobre os fornecedores indiretos. “É improvável que as empresas de Hong Kong que importam carne da Amazônia brasileira e a reexportam para a China continental sigam as especificações ambientais da Associação de Carne da China que exigem rastreabilidade dos fornecedores diretos e indiretos”, aponta o estudo.
“O que a gente percebe, também, é que não está claro como a associação implementará suas especificações”, diz Paulo Barreto. “O relatório comprova que várias empresas que exportam para a China obtêm gado de áreas com alto risco de desmatamento na Amazônia.”
Em meio à falta de transparência, a China segue autorizando a importação para novas plantas. Em março, o país anunciou a habilitação de 38 frigoríficos brasileiros para receber carne bovina, de aves e suína. Foi o maior número de plantas autorizadas de uma só vez em relação a acordos bilaterais, com projeção de um impacto de R$ 10 bilhões nas vendas ao país.
O Mapa informou que parte dos estabelecimentos foi auditada remotamente em janeiro deste ano. Outros receberam avaliação presencial de técnicos chineses, em dezembro de 2023.
O ministro do Mapa, Carlos Fávaro, classificou os acordos como um fato histórico. “Depois da sua [presidente Lula] visitar a China, das novas relações comerciais, sua relação pessoal com o Xi Jinping [presidente da China], no dia 12 de março, a notícia de 38 novas plantas frigoríficas abertas de uma só vez com a China”, declarou.
Lula celebrou a expansão. “Mais uma boa notícia para o Brasil, fruto da retomada das boas relações com o mundo. Mais 38 frigoríficos brasileiros já podem exportar carnes para a China. Um dia histórico na relação comercial Brasil-China e também para o agronegócio do nosso país. Já abrimos 96 novos mercados e vamos continuar crescendo”, declarou, por meio de suas redes sociais.
O secretário de Defesa Agropecuária, Carlos Goulart, afirmou que a decisão do governo chinês é a constatação da qualidade da pecuária nacional. “Este resultado histórico demonstra novamente o reconhecimento da qualidade, credibilidade e confiança do trabalho da defesa agropecuária do Brasil.”
Gigante chinesa do agro promete importação de soja 100% livre de desmatamento até 2025
As irregularidades ambientais cometidas por exportadores do agronegócio brasileiro com a China já não podem ser justificadas pelas dificuldades impostas pela distância que separa os dois países, ou mesmo um eventual desconhecimento dos chineses sobre qual é a realidade no campo quando se entra na Amazônia.
Neste ano, a maior trading de soja da China e uma das maiores do mundo, a estatal Cofco, completa uma década de presença física no Brasil. Sua entrada em território nacional se deu com a aquisição das tradings Nidera Sementes e Noble Agri, companhias que já operavam no país. Com uma base de produção e processamento em Rondonópolis (MT), a Cofco já soma mais de 7.200 funcionários no Brasil, do total de 12 mil que possui em 35 países, sendo a operação nacional a maior da companhia fora da China. Com a compra de soja e milho, além do cultivo e processamento de cana-de-açúcar, a trading chinesa tem produzido 1,3 milhão de toneladas de soja e 350 mil toneladas de biodiesel por ano.
De seus 19 armazéns e da base de processamento do Mato Grosso, a produção é escoada por ferrovia até o Porto de Santos (SP), onde a Cofco também está à frente de dois terminais do complexo portuário.
Na concorrência com outras gigantes do setor, como ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, a Cofco tem buscado formas de ampliar sua atuação no Brasil, mas se depara com o desafio de filtrar sua base de produtores. Pressionada a fazer o rastreamento de suas importações e parar de comprar soja produzida em área irregular, a Cofco se comprometeu, em 2020, a rastrear toda a sua cadeia direta de fornecedores até 2023.
No ano passado, conforme o balanço da estatal chinesa, a Cofco analisou cerca de 3,4 milhões de hectares de fazendas de soja, 48% a mais que em 2022, devido a uma colheita maior, e fez mais de 200 análises para pré-financiamento de produtores.
À reportagem, a Cofco declarou, por meio de nota, que “cumpriu sua meta de ter 100% de rastreabilidade para todos os volumes de soja de origem direta do Brasil até o final de 2023”. O compromisso fazia parte de uma linha de crédito assinada em 2019, entre a empresa e um grupo de bancos, no valor de US$ 2,3 bilhões, o qual previa a adoção de uma série de critérios de sustentabilidade. “A empresa considera esta conquista um passo importante para alcançar 100% de fornecimento de soja livre de desmatamento no Brasil até o final de 2025”, declarou a Cofco.
A questão é o que fazer com os fornecedores indiretos, ou seja, os produtores que vendem seus grãos para fornecedores que repassam essa carga para a trading. Uma reportagem realizada pela Repórter Brasil, em parceria com a Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, mostrou que, em 2021, a trading chinesa recebeu em seus armazéns soja produzida em um complexo agrícola com áreas de desmate recente, ou seja irregulares.
Uma análise realizada no ano passado pela empresa Trase, segundo informações da Dialogue Earth, também mostrou que a Cofco esteve exposta ao risco de ter comprado, em 2020, soja de mais de 12 mil hectares de terras recém-desmatadas, sendo a maior parte no Cerrado.
A reportagem questionou a estatal chinesa sobre que medidas tomou a respeito de produtores ilegais que já identificou, se houve algum tipo de sanção e se, atualmente, a empresa pode garantir que não compra mais soja de área desmatada irregularmente, seja no Cerrado ou na Amazônia.
A empresa não sinalizou que tenha adotado qualquer tipo de punição a eventuais desmatadores. “Os fornecedores são parceiros da companhia e é preciso trabalhar juntos para construir cadeias de abastecimento livres de desmatamento” declarou a Cofco. “Em vez de simplesmente bloquear os produtores, a empresa tenta resolver junto com eles os temas identificados pelos seus sistemas de análise socioambiental.”
A Cofco International garantiu que trabalha para atingir a meta de ter suas cadeias de abastecimento de soja livres de desmatamento até 2025, e livres de conversão até 2030, em todas regiões sensíveis da América Latina. “A rastreabilidade do fornecimento faz parte do cumprimento destas metas e se aplica ao fornecimento direto e indireto”, afirmou.
Para melhorar a rastreabilidade e gerenciar riscos associados aos fornecedores indiretos, a companhia declarou que está investindo em sistemas e expandindo a cobertura de avaliações de riscos ambientais e sociais. “Por meio do Soft Commodities Forum, a COFCO International está engajando fornecedores indiretos, em 61 municípios prioritários do Cerrado, com o foco na melhora da rastreabilidade e aumento da compreensão dos riscos”.
Em dezembro de 2023, segundo a companhia, foi alcançado o objetivo de monitoramento e pegada livre de desmatamento e conversão da soja proveniente destes municípios.
“A empresa também é signatária da Moratória da Soja, principal acordo setorial global para eliminar desmatamento em commodities agrícolas na Amazônia, e realiza auditorias anuais em suas compras do bioma seguindo os critérios do acordo”, afirmou a estatal.
Em seu relatório de sustentabilidade de 2023, a Cofco afirma que “os desafios sociais e ambientais no Brasil incluem desmatamento e conversão, mudanças climáticas e escassez de água”.
Mais especificamente, a empresa afirma que uma das regiões agrícolas mais produtivas do Brasil, a região de Matopiba – acrônimo para se referir a uma região dos Estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que soma 73 milhões de hectares –, “está particularmente em risco” e que a necessidade de “obter visibilidade sobre as atividades dos fornecedores, especialmente os indiretos, tem sido um desafio”.