A persistência dos alagamentos e das chuvas, com direito a ciclone e geada, pinta um cenário em que, mais de um mês após o início da maior tragédia climática do Rio Grande do Sul (RS), ainda não é possível ver seu fim. A gestão do desastre, no entanto, faz a transição para uma nova etapa. Com verbas bilionárias e em ano eleitoral, a reconstrução do estado gaúcho já está em andamento, mas tem ainda a disputa dos seus rumos em aberto.
“Essa é a dramaticidade do momento que a gente está vivendo”, resume Tarson Núñez, cientista político, ativista e pesquisador do Observatório das Metrópoles no Rio Grande do Sul.
“Porque governos e setores privados já têm a receita pronta, os instrumentos na mão e só precisam botar a mão no dinheiro, que já está disponível”, avalia Núñez. “É urgente que setores acadêmicos e populares pensemos o que queremos com essa reconstrução”, defende.
Em uma estimativa inicial, o governo do RS avaliou que precisará de R$ 19 bilhões para a reconstrução do estado. Ao GZH, especialistas como o economista Luís Otávio Leal e o consultor Claudio Frischtak falam de cifras ainda maiores, entre R$ 85 bilhões e R$ 90 bilhões.
No seu primeiro pacote de medidas, o governo Lula (PT) anunciou uma injeção de R$ 50,9 bilhões no RS, especialmente com linhas de crédito a juros baixos e adiamento do recolhimento de impostos. No Congresso Nacional, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), defende a aprovação de um “orçamento de guerra”, com regras fiscais flexibilizadas.
“Capitalismo de desastre”
Para Victor Marchezini, sociólogo e professor do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o “capitalismo de desastre se manifestou em Porto Alegre”.
Usando um termo da jornalista canadense Naomi Klein no livro A doutrina do choque, Marchezini se refere ao uso, por parte de gestores privados e públicos, de experiências de choque – como catástrofes – para fazer avançar oportunidades de negócios de maneira que, em situações de normalidade, não seria possível.
No caso do Rio Grande do Sul, esse caminho é expresso na contratação, pelo governo de Eduardo Leite (PSDB), de empresas estadunidenses de consultoria, como Alvarez & Marsal (A&M) e Mckinsey. O que traz, na visão de Núñez e Marchezini, outro problema para além do benefício a interesses privados.
Se a reconstrução for pautada pela lógica do mercado, aponta ele, as cidades serão reerguidas aprofundando o modelo de desenvolvimento que, justamente, causou a tragédia. “É sempre o modo como a gente ocupa o território que gera as consequências do que a chuva, na verdade, está revelando”, sintetiza Marchezini.
“A catástrofe não foi criada pelas nuvens que choveram”, salienta Tarson. “Elas poderiam não ter tido um impacto tão grande se os campos da Serra não tivessem sido aplainados para plantar soja, o que reduziu a cobertura vegetal, assoreou os rios, fez a água cair mais rápido”, exemplifica: “Boa parte do desastre resultou de um modelo econômico que é causador deste processo”.
“Por isso a reconstrução”, preocupa-se Marchezini, “não pode ser guiada pelos mesmos grupos políticos e econômicos responsáveis pela degradação dos últimos anos”.
Com uma equipe da Universidade Federal de São Carlos, Victor visitou locais como Teresópolis (RJ), Barreiros (PE) e Ilhotas (SC) depois de tragédias climáticas, em uma pesquisa que resultou no livro Abandonados nos desastres. “Vimos situações que estamos começando a ver no RS de forma muito rápida”, constata.
“O momento pode ser o de aproveitar a existência de recursos federais em grande escala para pensar uma reconstrução a partir de um novo paradigma, centrado nas pessoas e não no lucro”, observa Núñez, para quem “esta é a questão fundamental colocada hoje”.
“Meu medo é que o drama da situação sirva como uma espécie de cortina de fumaça para que a gente não discuta as causas últimas desta calamidade”, alerta.
McKinsey “espalhando o capitalismo americano”
Na última terça-feira (28), o “termo de cooperação” entre o governo e a McKinsey & Company foi publicado no Diário Oficial do Rio Grande do Sul. A consultora, fundada nos EUA em 1929 e presente em ao menos 60 países, vai “apoiar” o governo “no gerenciamento da crise” causada pelas “chuvas intensas”.
As ações da empresa, diz a súmula, serão de “planejamento para reestabelecimento da atividade econômica”, “identificação de alavancas de apoio ao setor produtivo” e “mapeamento de fontes de recursos financeiros”. O trabalho durante 60 dias é sem repasse de valor. Depois pode ser renovado, não se sabe a qual preço.
No livro Nos bastidores da Mckinsey: A história e a influência da consultoria mais admirada do mundo, o jornalista Duff McDonald afirma que a companhia ajudou “empresas e governos a criar e manter muitos dos comportamentos corporativos que moldaram o mundo em que vivemos”.
Se tornando “parte indispensável” em decisões de alto escalão, escreve McDonald, a Mckinsey ajudou a “inventar o que enxergamos como capitalismo americano e a espalhar isso para cada canto do mundo”.
“Historicamente, clientes procuram a Mckinsey para ajudá-los a resolver problemas – a consultoria foi responsável ao longo das décadas por aconselhar de demissões em massa a aquisições e novas possibilidades de negócios”, descreve matéria da Exame.
O furacão privatista da A&M
Já a Alvarez & Marsal foi contratada primeiro pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB). Os serviços teriam sido oferecidos voluntariamente por Pedro Bortolotto, um dos diretores da empresa no Brasil que é porto-alegrense. Questionado sobre a escolha, Melo declarou: “porque eu posso decidir”.
Quatro dias depois, Leite seguiu o mesmo caminho. A “doação de serviços sem encargos” ao governo estadual foi firmada em 14 de maio, com vigência de 30 dias, podendo ser renovada.
Presente no Brasil desde 2004, a A&M ganhou manchetes por ter empregado o ex-juiz Sergio Moro em 2020, depois de receber R$65 milhões para administrar judicialmente empresas alvos da Lava Jato, por ele comandada. O possível conflito de interesse está sendo investigado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
A companhia já deixou marcas no próprio estado gaúcho. Sem licitação, foi contratada para fazer uma avaliação financeira da Companhia Rio-grandense de Saneamento (Corsan). Pouco tempo depois, prestou seus serviços para a Aegea Saneamento que, por R$4,1 bilhões, arrematou a privatização da antiga estatal.
Mas é sua atuação em Nova Orleans, nos Estados Unidos, depois de 80% da cidade de Louisiana ficar submersa com a passagem do furacão Katrina em 2005, um dos principais pontos do currículo da A&M.
“Entre os que vislumbraram uma oportunidade nas inundações de Nova Orleans estava Milton Friedman, grande guru do movimento pelo capitalismo sem grilhões”, descreve Naomi Klein em Doutrina do choque.
“A ideia radical de Friedman sustentava que, em vez de gastar uma parte dos bilhões de dólares do dinheiro da reconstrução refazendo e melhorando o sistema escolar público preexistente em Nova Orleans, o governo deveria fornecer vouchers para as famílias, os quais elas poderiam gastar nas instituições privadas, muitas com fins lucrativos, que seriam subsidiadas pelo Estado”, relata.
A A&M seguiu à risca. Em 19 meses, sobraram quatro escolas públicas – outras 318 passaram para a administração privada. Os 4.700 professores membros do sindicato, que tinha forte atuação, foram demitidos.
“O American Enterprise Institute, uma entidade afiliada ao pensamento de Friedman, manifestava seu entusiasmo porque ‘o Katrina havia realizado em um dia aquilo que os reformadores educacionais da Louisiana vinham tentando fazer durante anos’”, conta Klein.
Em 2014, o então prefeito de Nova Orleans pelo partido Democrata, Ray Nagin, foi condenado a dez anos de prisão por fraude, suborno e lavagem de dinheiro durante a reconstrução. Teve de devolver US$ 585 mil aos cofres públicos.
“Hoje Nova Orleans tem 200 mil habitantes a menos do que tinha antes do furacão. Toda a área do distrito histórico da cidade, habitado pela população negra e pobre, foi reconstruída com um modelo voltado a viabilizar negócios. A habitação se tornou cara demais para seus habitantes originários. O ambiente foi gentrificado”, descreve Tarson Núñez.
“Porto Alegre alagou fundamentalmente por uma falha de manutenção dos equipamentos de prevenção da cheia. Portanto, muitas áreas alagaram que não vão se alagar nas próximas enchentes”, aponta o pesquisador do Observatório das Metrópoles.
“No entanto, por exemplo, ao lado da arena do Grêmio tem uma área enorme de habitação popular que o poder público não conseguia retirar porque garantiram seu direito à terra através da luta coletiva. O mercado imobiliário está de olho nessas áreas há anos. Agora, com o alagamento e a destruição das casas, o que a A&M vai sugerir?”, questiona Núñez.
Outra gigante da consultoria atuando no pós-desastre gaúcho é a britânica Ernst & Young (EY). Até o momento, no entanto, não há contratos publicados no Diário Oficial.
Em nota, a empresa informou que foi “acionada pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul” e vai “prestar apoio no desenho da estratégia de levantamento e utilização de recursos necessários para promover a reconstrução do estado”. A consultoria, afirma a EY, “será realizada por quatro semanas, de maneira pro bono” a partir da assinatura do contrato, ainda em processo de aprovação. As outras empresas foram procuradas pela reportagem, mas não responderam até o fechamento deste texto.
“Eu acho ‘estranho’ que uma consultoria esteja disposta a trabalhar sem receber remuneração pelos seus serviços. Olha, como toda empresa, seu objetivo é crescer e gerar lucros. Elas operam a partir da lógica do mercado e atuam para atender os interesses do contratante. Essas consultorias não são ingênuas”, avalia a geógrafa Claudia Marcela Orduz Rojas.
Ao Brasil de Fato, o governo de Eduardo Leite declara que “a natureza da parceria com as consultorias é a mesma que a realizada com as universidades e academia. São parceiros para a reconstrução do Rio Grande do Sul, que darão apoio e suporte à realização dos projetos do Plano Rio Grande”.
Capitalismo de desastre no Brasil
“Tudo acontece de forma muito rápida e alinhada porque o ‘receituário’ da doutrina do choque, elaborado pelo economista norte-americano Milton Friedman, já foi testado diversas vezes”, explica Rojas.
Nas disputas dos rumos da gestão de desastres, a velocidade é um dos tantos aspectos que fazem sair em vantagem os setores que não estão, por exemplo, com a casa submersa, o corpo contaminado ou o amigo desaparecido.
“O tratamento do choque permite a eliminação progressiva da esfera pública (privatização progressiva de setores estratégicos), a garantia de total liberdade para as corporações (que vem crescer seus rendimentos) e a redução ao máximo dos gastos sociais. A proposta é tão radical e prejudicial para a grande maioria, que só pode ser aplicada em situações excepcionais”, define Rojas.
Claudia estudou o rompimento da barragem da Samarco (Vale / BHP Billiton), que em 2015 matou 19 pessoas e despejou rejeitos minerais pela Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais. Para ela, foi aí que aconteceu o “primeiro experimento de grande monta do capitalismo de desastre no Brasil”.
E só foi possível, em sua visão, a partir de três terapias de choque. A primeira, o rompimento da barragem. A segunda, um “ambicioso programa econômico neoliberal, antidemocrático e impopular” para reparar danos que, impulsionado por corporações, inaugurou um nicho de mercado. A terceira, a imposição de mecanismos de tortura coletiva aos atingidos, de forma a “reduzir o gasto social” e “neutralizar a resistência”.
Indagada sobre os aprendizados que o episódio pode oferecer para pensar a tragédia gaúcha, Rojas destaca que “os processos de reparação e reconstrução não podem ficar a cargo de empresas privadas”.
“As emergências, a miséria e os vulneráveis tornaram-se as mercadorias mais valiosas do mundo”, constata a pesquisadora. “Auferir lucros a partir do caos, da devastação e da miséria parece ser o único objetivo da ‘indústria do desastre’, que conta com um aliado incondicional: o Estado”, diz.
A Secretaria da Reconstrução Gaúcha, criada pelo governador Eduardo Leite no último 17 de maio e comandada por Pedro Capeluppi, tem quatro subsecretarias. Nenhuma delas trata de questões ambientais ou emergência climática. São elas: Projetos para reconstrução; Projetos Estruturantes; Parcerias e concessões; e Inteligência mercadológica.
Para Victor Marchezini, uma expressão do capitalismo de desastre que “talvez o Rio Grande do Sul tenha inaugurado no Brasil, embora tenha um efeito de mobilizar a sociedade civil na arrecadação de donativos, é a monetização da tragédia por personalidades que vão à cena do desastre, ganham seguidores, etc. Ou mesmo as fake news, que geram engajamento”.
Reação popular e dispersão
Tarson Núnez viu seu edifício em Porto Alegre cercado por água por quatro dias. “Eu fui retirado, mas não era um barco da Defesa Civil, não era um barco da Polícia Militar. Era um barco de voluntários”, relata.
“Um elemento que essa tragédia revela é a enorme capacidade de empatia, solidariedade e auto-organização popular que existe na nossa sociedade”, salienta. “Não foi o Estado que saiu organizando voluntários. Os voluntários se organizaram, e o Estado se agregou depois”, conta Tarson.
Além disso, na visão de Núñez, o cenário fortaleceu entidades e movimentos ambientalistas que “vinham sofrendo reveses atrás de reveses”. Entre elas a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que não conseguiu impedir a alteração, por parte da gestão Leite, de 480 pontos da legislação ambiental do estado.
Também despertou em atores de instituições de pesquisa e ensino “um sentimento de urgência de colaborar”: “A emergência catalisou um movimento que estava dormido. Gente que tem capacidade intelectual e técnica e que hoje está se movimentando para influir neste debate”, destaca Tarson Núñez.
“As cozinhas comunitárias são maravilhosas, estão salvando a vida de milhares de pessoas. Mas todas essas iniciativas, que estão surgindo de baixo para cima com muita consistência e capacidade técnica, estão dispersas. E precisam ser unificadas”, opina Tarson.
Na avaliação de Claudia Rojas, tragédias ambientais se tornarão cada vez mais frequentes e, assim, “a próxima fase do capitalismo de desastre vai se complexificar e sofisticar”.
“A ‘infraestrutura de desastre’ estará disponível para qualquer um que possa pagar, pelo preço que o mercado determinar. Tudo estará à venda, do resgate por helicópteros em telhados a água potável e camas em abrigos. A economia do desastre não só vem crescendo como é amplamente assimilada pelas dinâmicas do mercado. A cada crise, dobra-se a aposta no capital”, discorre Rojas.
Por isso, opina Rojas, “é crucial estabelecer e fortalecer uma grande coalizão com as pessoas e não com as corporações. É imprescindível ressignificar a ideia e o sentido da riqueza. É vital garantir que o poder e o conhecimento, cuja finalidade é servir à vida, pare de servir a si mesmo”.
Publicado originalmente no Brasil de Fato.