Por Lenio Streck
1- Explicando o imbróglio e o título
Calma. Parece estranho o título. Mas, isso ficará mais claro no decorrer do texto (admito que se pode dizer que Advocacia-Geral da União (AGU) não é propriamente governo; mas isso está exatamente no cerne da discussão que proporei).
Todos sabem do processo do Power Point. Dallagnol foi condenado a pagar indenização para Lula. O STJ acolheu recurso e condenou o ex-procurador. Do STJ houve recurso para o STF e a ministra Cármen indeferiu o pleito de Dallagnol.
Ocorre que a AGU apresentou um recurso contra a decisão da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal, que manteve essa condenação. A AGU representa o ex-procurador no caso desde 2017, a pedido dele próprio. De acordo com o artigo 22 da Lei 9.028/95, a AGU pode representar em juízo agentes da administração pública federal quando estes respondem a processos judiciais devido a atos praticados no cumprimento de dever. Isso acontece todos os dias. Alguns casos vêm a público e nos surpreendem, como o caso Bolsonaro-Val do Açaí sendo defendido pela AGU (ler aqui). No caso de Val do Açaí e Bolsonaro, o Estado acusa (MPF) e AGU defende.
Quer dizer: os cidadãos brasileiros é que pagam a defesa de Dallagnol (na verdade, ele tem duas ótimas defesas: a feita por seus advogados e pelo próprio Estado-governo).
Tenho contestado essa prerrogativa de servidores públicos serem defendidos pela Viúva por meio da AGU. Penso que sempre quando há uma lei que estabeleça algum direito ou dever, a primeira coisa que um jurista faz é verificar a constitucionalidade. Não tem sido o caso. Como veremos.
O advogado da União que defende Dallagnol sustenta que a decisão da ministra Cármen é “inconstitucionalidade chapada”. Isso porque o STF decidiu, em 2019, que danos causados a terceiros por agente público no exercício da função são de responsabilidade do Estado. A pessoa prejudicada deve ajuizar diretamente a ação contra o ente público, que poderá buscar o ressarcimento do agente causador do dano (RE 1.027.633, que corresponde ao Tema 940). Como Lula acionou diretamente Dallagnol, a ação tem de ser anulada, diz a AGU.
Esse precedente do STF tem sido esgrimido por Dallagnol e pela AGU. O STJ fez um distinguishing e não o aplicou. Para o STJ, a conduta danosa perpetrada por Deltan foi irregular, extrapolando suas atribuições funcionais. Por isso tornou-se legitimado passivo. Por isso o precedente do STF não aplica ao caso do Power Point. Ou seja, para o STJ o entendimento do STF (somente) é cabível em casos em que a conduta danosa do agente público derivar do exercício das funções públicas regulares. Se não for assim, não é aplicável, possibilitando que o agente seja legitimado passivo da ação, quando sua conduta for irregular, estranha às suas atribuições. Em outras palavras; uma coisa é fazer a denúncia como MP; outra é extrapolar e fazer o Power Point e causar dano ao (ex-)presidente Lula.
No STF, a ministra Cármen Lúcia concordou com o STJ. E, como já dito, contra isso a AGU se insurge, dizendo que a decisão da ministra é inconstitucional na forma “chapada” (sic) porque vai contra precedente da Suprema Corte e contra a Constituição.
2 – O que interessa na discussão é se a AGU pode ou não defender Dallagnol
Se o precedente do STF se aplica ao caso, não tem importância na discussão que proponho. Afinal, também a Lindb aponta na direção do que disse o STJ, ao estabelecer no artigo 28 que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Logo, no mínimo tem-se uma antinomia em relação ao artigo 22 da Lei 9.028/95. Mas isso é a discussão de mérito.
O que me interessa, portanto, é colocar em pauta essa estranha previsão de que o próprio Estado defende servidor que comete ação lesiva contra o próprio Estado (ou contra terceiros). O que o contribuinte acha disso?
Na hermenêutica e no constitucionalismo tem-se que texto não é igual a norma. Isto é, o texto não contém a própria norma. Deveria a AGU contestar o dispositivo, porque este causa prejuízo ao erário. Trata-se de um gasto público indevido. Aliás, a OAB questionou lei semelhante de Estado federado, cuja ADI não foi conhecida por razões técnicas. E o STF decidiu não decidir. Resta aqui a sugestão de que a OAB (ou a própria AGU) deve insistir na inconstitucionalidade do aludido artigo 22.
Veja-se que, pela leitura textualista da AGU, o servidor, qualquer coisa que faça de errado, inclusive cometendo crime, tem de (ou pode) ser defendido pelo próprio Estado, mesmo que o crime seja contra o próprio Estado. Trata-se de um desvio hermenêutico da finalidade da função da AGU.
Ora, o Estado (representado pelo governo) não é para isso. Nesse sentido, a bela tese doutoral da procuradora do estado de São Paulo Marcia Semer. Ela aponta essa crise de identidade da advocacia pública. E vai na linha do que foi pleiteado na ADI pela OAB. E aqui concordo com Márcia e CFOAB.
Alguém dirá: mas, isso já aconteceu em governos anteriores. Pois está errado. Vários erros não dão um acerto. E ninguém deve ser coerente com e nos erros. Espero que a OAB volte à carga. E o próprio governo. Veja-se o ponto em que se chegou: o próprio Estado-governo, via AGU, defende alguém que ofendeu o presidente da República, chefe do Estado e chefe do governo. Por isso o título da coluna. Aliás, o STF poderia aproveitar agora, no bojo do recurso da AGU em favor de Dallagnol, e declarar a inconstitucionalidade, bastando levar a matéria para o full bench. Nem precisaríamos de ADI.
Pode-se dizer, assim, que existe, sim, no caso, uma inconstitucionalidade chapada, como diz o advogado da União. Só que essa inconstitucionalidade reside na própria lei que autoriza a defesa de Dallagnol por parte da AGU. Essa, de fato, é uma inconstitucionalidade chapada (sic).
3 – O que diz a comunidade jurídica?
Se isso não exige atenção da comunidade jurídica, então o que mais nos impressionará? Isonomia: eu quero uma para sobreviver juridicamente neste país. Vejamos: um cidadão “comum” (sic) comete um delito em uma empresa privada. Terá que contratar advogado ou a Defensoria o defenderá. Mas, se for funcionário público será defendido pelo próprio Estado. O engraçado – ou trágico – é quando a infração ou ofensa é cometida pelo servidor contra o próprio Estado que… o defenderá.
Vou deixar ainda mais claro: um servidor comete um desfalque contra o Estado; o Estado o defenderá do crime contra o próprio Estado. Gastando dinheiro da vítima. Isso ofende o mais comezinho princípio de direito. E a República. E a moralidade. E ofende àquilo que MacIntyre chama de “funcionalidade da interpretação”, ao falar sobre um relógio quebrado.
Volto à tese de Márcia Semer, para quem não há dúvida de que a advocacia pública é de Estado. Não deve advogar para agentes públicos. Essa atribuição é espúria, diz. Trata-se de um resquício patrimonialista. Isso ficou muito claro quando, depois da ditadura, agentes da advocacia pública tinham de defender agentes ditatoriais. Ela lamenta que o STF tenha decidido não decidir. Correto o dizer da procuradora paulista. É disso que se trata.
Acrescento que essa situação pode gerar, além de esquisitices (sendo eufemista) como o caso de Dallagnol, coisas como o que ocorre em Minas Gerais (ler aqui), onde o “Governo de MG defende Aécio para NÃO receber R$ 11,5 milhões do próprio deputado”. Sim, o governo atua com seu aparato advocatício para NÃO receber. Afinal, nenhum advogado entra em um processo para perder.
Explicando: em Minas, o MP deseja cobrar de Aécio uma pequena fortuna que ele deve ao estado de Minas. E quem defende Aécio? O próprio estado. O mesmo estado que, por meio da PGE (Procuradoria Geral do Estado), terá que torcer contra si. Ou não. Ou seja, para torcer a seu favor (cofres públicos), o Estado, representado pela PGE, torcerá para perder? Quer dizer… difícil de explicar.
É disso que falo. Apelo aqui ao ministro da AGU, à OAB, ao parlamento e ao STF que nos livrem desse, para usar as palavras da procuradora Márcia, resquício patrimonialista de uma velha noção de Estado. É inconstitucional transferir recursos da sociedade para fazer a felicidade de um agente estatal que cometeu infração contra terceiros ou, pior, contra o próprio Estado. O agente que se defenda ou faça como o povo pobre faz: procure a Defensoria Pública.
Simples assim. O resto é criterialismo de uma dogmática jurídica rasa e falida, que substitui o direito pelo discurso ficcional. Talvez por isso essas coisas sobrevivam.
Publicado originalmente no Conjur
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