Leio no Jazeera – um excelente site e canal de notícias baseado no Catar – um texto sobre o Brasil. O título indaga: onde foi parar a famosa cordialidade brasileira?
O autor recolhe, no caso do Mensalão, coisas – insultos, maledicências, calúnias — que mostrariam que já não somos tão cordiais assim.
Primeiro, um depoimento. Quase quatro anos depois de vir para Londres, o brasileiro é, sim, reconhecido e admirado pela cordialidade. As pessoas costumam abrir um sorriso quando você diz que é brasileiro. Não à toa. O Brasil, imenso como é, jamais foi um país bélico, militarista, arrogante. Todas as religiões sempre conviveram no Brasil sem dramas.
Volto ao artigo do Jazeera. Onde foi parar o brasileiro cordial, então?
Minha suspeita é que está onde sempre esteve: nas ruas. Aqui, ali, em todos os lugares. O articulista se deixou enganar pelo tom belicoso do universo da política brasileira.
Aí, sim, e não é de hoje, vigora o ódio. Carlos Lacerda é o maior símbolo disso. Tanto quando militou na esquerda como quando passou para a direita, Carlos Lacerda combateu com uma agressividade extrema, cínica e, não raro, desonesta.
O “mar de lama” que ele infamemente atribuiu ao presidente Getúlio Vargas, que só se livrou de Lacerda dando um tiro no coração em 1954, é o retrato do homem que institucionalizou o ódio na política brasileira.
Lacerda conseguiu tudo com isso – exceto o que mais desejou: a presidência da república. Como Serra, ele se julgava um predestinado a ser presidente. Com o golpe de 1964, os militares suprimiram o debate político — e o ódio na política ficou como que em suspenso. Até pelas circunstâncias, os grandes políticos da oposição aos militares, como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, manobraram com cuidado suas críticas. Eram radicais da moderação.
A redemocratização foi gradativamente devolvendo o ódio à política brasileira. A ausência de um novo Lacerda impediu que as agressões retornassem logo aos níveis tonitruantes que marcaram primeiro o suicídio de Getúlio e depois a queda do presidente João Goulart, em 1964.
Foi nos últimos doze anos, com a chegada do PT ao poder, que o ódio voltou a dominar a política brasileira. Ela se manifestou primeiro como medo: o Brasil viraria uma União Soviética? (Também eu estava sobressaltado, e não me acalmei quando vi que o dólar passara de três reais com a iminência da vitória de Lula. Acabei votando em Serra, pela última vez.) Depois, quando ficou claro que não, que o Brasil continuaria ser um país capitalista no qual os ricos poderiam ganhar ainda mais dinheiro que antes, o medo foi cedendo à raiva que chamou a atenção do articulista que li no Jazeera.
A mídia vem desempenhando um papel extraordinário nisso. Pequenos Lacerdas – Jabor, Merval, Kamel, Reinaldo Azevedo, Mainardi, para ficar no que poderíamos designar como Quinteto Aloprado, em cuja suplência talvez possamos incluir Noblat — como que se uniram e formaram um Lacerda inteiro com a soma de suas vociferações incessantes e de suas catilinárias estridentes em defesa dos interesses daquilo que o movimento Ocupe Wall Street definiu tão bem como o “1%”.
Como o Lacerda original, os pequenos Lacerdas estão longe de representar o povo brasileiro – tolerante, afetuoso, gentil. O autor do artigo do Jazeera tomou, felizmente, a parte que berra pelo todo. O brasileiro continua a ser o que é – cordialíssimo, como diria o agregado José Dias, o superlativo personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Por isso ri, ainda que na pobreza miserável, enquanto os pequenos Lacerdas parecem atormentados, torturados, infelizes — e reunidos num obsoleto e insustentável conjunto de ‘ideias’ que, fora promover uma monstruosa concentração de renda, vergou a economia internacional numa das maiores crises da história.