Decisão ativista autoriza jovem a cursar medicina sem ensino médio. Por Lenio Streck

Atualizado em 25 de julho de 2024 às 10:46
Profissional da saúde – Foto: Reprodução

Por Lenio Luiz Streck

1. O Direito dúctil como companheiro inseparável do ativismo judicial

Esta coluna é, como sempre, propositiva. Propõe critérios. Deixa-os claros. A crítica tem a intenção de mostrar como a ausência de critérios pode ser prejudicial à República.

Com efeito.

Há várias formas de fazer Direito “doce” ou “adocicado”. Uma delas é proferir uma decisão que seja querida, bondosa, daquelas que ninguém seja contra. E quem tiver a ousadia de ser contra, será visto como má pessoa. Por exemplo, quem seria contra plantar begônias na praça da cidade?

Vamos a um caso de Direito “dúctil”, tecnicamente chamado de ativismo judicial stricto sensu.

2. O caso concreto – o juiz decidiu que é possível cursar medicina sem terminar o ensino médio – depois voltou atrás, mas continua errado

O Juiz da 8ª Vara Cível de Campinas (SP) autorizou liminarmente — em poucas e mal fundamentadas linhas (Bernd Rüthers chama a isso de “fobia metodológica”, caracterizando aquilo que Meyer-Hayoz denomina de “carência fundamental de fundamentos”) — a matrícula de uma estudante no curso de medicina, mesmo sem ela ter concluído o ensino médio. A decisão se baseou na capacidade intelectual (sic) demonstrada pela aprovação da estudante no vestibular da instituição.

Na decisão, o juiz dizia que a faculdade deveria permitir que ela pudesse concluir o ensino médio supletivo enquanto realiza o curso de graduação.

Nos autos da ação, a faculdade confirmou a matrícula da estudante e declarou que não se opunha ao pedido da adolescente. No entanto, enfatizou que a legislação brasileira exige a conclusão do ensino médio como requisito mínimo para o ingresso no ensino superior.

Diante da resposta da faculdade, o juiz reconsiderou a decisão na última quarta-feira (17), alegando a impossibilidade de a adolescente cursar, simultaneamente, os dois cursos. Ele determinou, então, que a faculdade reserve a vaga até que a estudante apresente o certificado ou diploma de conclusão do ensino médio, possibilitando, assim, o início do semestre letivo de medicina. Em seus termos:

“Da análise da resposta da requerida, revoga-se parcialmente a medida liminar, ante a impossibilidade da autora cursar, concomitantemente, o ensino médio e o ensino superior, nos termos do artigo 44, da Lei nº 9.394/96. Assim, mantém-se a ordem de matrícula no ensino superior, a qual houve notícia de seu cumprimento, com reserva de vaga, para, mediante a apresentação do certificado de conclusão de curso e do histórico escolar do ensino médio, a autora esteja apta a iniciar o semestre letivo de medicina. Serve uma via desta decisão como mandado/ofício”

Mas afinal, qual foi o problema? Por que a decisão estava errada desde a sua gênese? Isto é, por que a decisão foi ilegal e inconstitucional? E porque continua errada, mesmo após o juiz voltar atrás?

3. As três perguntas

De há muito tento demonstrar que uma decisão que trate de direitos desse quilate (algo como comprar ônibus para crianças irem à escola ou determinar um currículo especial para aluno que faz objeção de consciência etc.) deve passar por um filtro de três perguntas que chamo de Fundamentais [1]. Se se responder negativamente a uma delas, a decisão estará errada e, mais do que isso, será ativismo judicial.

A primeira delas é de ordem da legalidade — Teoria da Constituição. Deve-se indagar: existe um direito subjetivamente exigível ou há um direito fundamental a ser perseguido? Não há um direito fundamental a alguém ingressar em um curso superior sem ter concluído o ensino médio. Não é permitido “saltar”. Seria o mesmo que dizer que, no caso de homeschooling, existe um direito fundamental de não mandar o filho para a escola (o Direito diz o contrário). Não há um direito exigível. Logo, a questão já terminaria por aqui. A lei exige que se conclua ensino médio. Por qual razão o juiz poderia superar esse obstáculo?

A segunda pergunta é de Teoria do Estado — uma questão decorrente do sentido da República e o tratamento igualitário dos cidadãos. Devemos indagar se, nas mesmas condições fáticas (se se quiser, nas mesmas condições de “temperatura” e “pressão”) qualquer pessoa pode ser beneficiada por uma decisão judicial no mesmo sentido. Parece evidente que, se todos os estudantes que se considerem acima da média decidirem não concluir o ensino médio (ou concluir depois) buscarem matrícula depois de passar em vestibular acarretaria, isso traria um caos no “sistema”. Por que esperar terminar o ensino médio? Ora, basta arriscar e passar no vestibular…

E não se venha dizer que, pessoalmente, a aluna ou aluno é “acima da média”. Ora, passar em vestibular não é medida para isso.

Logo, a resposta é igualmente negativa para a segunda pergunta.

Alunos de medicina em sala de aula – Foto: Reprodução

A terceira pergunta diz respeito à Teoria da Justiça (igualdade e isonomia como limite interpretativo). Com a decisão, está mantida a isonomia e a igualdade, não havendo transferência indevida de recursos? Aqui a resposta também é negativa. Na medida em que uma pessoa ou várias ingressarem antes de terminar o ensino médio — retirando, assim, vagas do sistema — haveria transferência indevida de recursos de toda a comunidade para fazer a felicidade daqueles vestibulandos.

Portanto, pela teoria da decisão, criteriologia que pode facilmente ser testada, não fica difícil dizer que o juiz errou. Isso é ativismo. Aqui, aliás, reside um ponto que diferencia o ativismo da judicialização da política. Assim (1) o ativismo é behaviorista, em que o juiz substitui os critérios do legislador pelos dele; (2) já a judicialização é contingencial. Ela é bem-vinda, se a decisão passar pelos critérios das perguntas fundamentais.

Ademais, o juiz continua errado, ao determinar reserva de vaga. Também aqui as três perguntas são o critério para bem demonstrar o erro. A lei não permite essa reserva; essa reserva não pode ser universalizada (imaginem que todo e qualquer aluno que esteja cursando o ensino médio preste vestibular e com isso terá reserva de vaga!!); por último, fere-se a isonomia e a igualdade, porque se for faculdade pública, a reserva da vaga impede outra pessoa de a ocupar e, se for faculdade privada, será uma forma de privilegiamento de quem tem recursos, em detrimento de outras pessoas que possam disputar o certame nas mesmas condições (as pessoas com recursos poderão reservar vagas antes de concluir o ensino médio). Afinal, mesmo as faculdades privadas são um braço do poder público.

4. A construção dos critérios no plano de uma teoria da decisão

Tenho escrito sobre isso muitas vezes e orientado teses de doutorado sobre o tema, como é o caso do livro Ativismo Judicial e Judicialização da Política — Três Perguntas Fundamentais para uma Distinção (ed. Juspodium), de Isadora Neves; também Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da Atuação do Judiciário, de Clarissa Tassinari (ed. Livraria do Advogado).

As três perguntas fundamentais também foram adotadas pelo ministro Gilmar Mendes, quando da decisão sobre o caso Homeschooling (STF — RE 888.815).

Se adotássemos essa criteriologia das três perguntas fundamentais, evitaríamos tantos ativismos judiciais. E economizaríamos bilhões, como falei no Congresso dos Tribunais de Contas juntamente com meu orientando de então, Gilberto Morbach. Demonstramos o modo como poderíamos fazer essa economia, evitando decisões que atrapalham e trazem prejuízos ao erário.

5. Por que cumprir a lei é sempre mais econômico para a República

No fundo, o busílis é simples. Há muitas análises econômicas por aí. Até a Lindb possui exigências de consequencialismo. Só que o curioso é que a maior economia de todas viria com um pouco de ortodoxia jurídica. Isto é, sejamos ortodoxos. Cumprir a lei é mais barato, podem apostar. É o estranho paradoxo: adeptos de análises econômicas, estou certo, aplaudiriam uma certa ortodoxia econômica. Mas, então, por que no direito há essa heterodoxia? Em suma, cumprir a lei não é feio. E economiza dinheiro público. É facilmente demonstrável. Basta querer.

Mas quem se interessa por critérios? Também em Lisboa, recentemente, fiz palestra enfocando as três perguntas fundamentais, para mostrar um modo de racionalizar decisões que tratam de direito prestacional. Esse é o papel da doutrina. Construir critérios de racionalidade. Um certo controle de qualidade epistêmico.

Vale o mesmo para os críticos que preferem “fazer justiça”. Em uma democracia, sob o Constitucionalismo Contemporâneo, o critério mais seguro de justiça, sem cair em emotivismos, é aplicar a lei. Desculpe-me MacIntyre, concordo com seu diagnóstico, mas discordo de seu remédio. Porque ainda acredito no direito e não estou esperando a virtude.

Numa palavra: por que gastamos mal? No âmbito da distribuição de remédios, então, alguém já parou para fazer um cálculo? E em vagas para creches? Basta uma decisão judicial? Mas o problema é assim tão simples? É universalizável uma decisão judicial que concedeu licença-maternidade, por 180 dias, a um perito médico do próprio INSS, pai de crianças gêmeas geradas por meio de fertilização in vitro e barriga de aluguel? Alguém já se perguntou se isso também vale para os funcionários do Bradesco ou só para funcionários públicos, cujo pagamento vem dos impostos pagos por todos? É universalizável? Não há transferência indevida de recursos?

Insisto na pergunta: por que decidimos sem critérios? Talvez porque seja mais fácil cada juiz olhar o caso e decidir por intuição. Como no caso do juiz de Campinas. E do juiz que mandou comprar ônibus para crianças irem ao colégio. Com mais dois motoristas etc. E os vereadores e o prefeito? “Deixem eles pra lá. Eles não sabem nada de políticas públicas”, alguém poderá dizer.

[1] Nesse sentido, conferir: (1) STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 394 e seg; (2) STRECK, Lenio Luiz. 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 6, 71, 275-276 e 293, (3) STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 217.

Originalmente publicado em ConJur

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