Existe algo de estranho na narrativa do documentário recém-lançado na plataforma Netflix, “O Homem com Mil Filhos”. O polêmico caso de doador de esperma, o picareta Jonathan Jacob Meijer, foi levado a júri na Holanda por ser um doador compulsivo e por enganar inúmeras mulheres e suas famílias. Ele não ficou satisfeito em fornecer seu sêmen em grandes quantidades para bancos de esperma holandeses e também por contato pessoal com as interessadas. Meijer rompeu as barreiras dos continentes, mares, regras jurídicas e morais, fazendo de tudo para espalhar seu DNA por diversas localidades.
O intrigante é como esse indivíduo, em constante dissimulação, circulava pelo mundo, deixando seu sêmen em várias partes da Europa e África. Além disso, surge a pergunta: quem financiava essas viagens e as baboseiras publicadas em seu canal no YouTube? Sabemos que o mercado de reprodução via bancos de esperma é uma das “minas de ouro do Rei Salomão” em uma sociedade de solitários e carentes em escala geométrica.
Um banco de esperma é uma alternativa segura para quem quer ter filhos, mas enfrenta algum impedimento, como homens que passaram por tratamento de câncer de próstata, pênis e testículos, casais homoafetivos, mulheres que desejam ter uma maternidade solo, casais cujo membro masculino tem graves distúrbios na produção de espermatozoides e não responde aos tratamentos convencionais, entre outros.
Na Holanda, cenário do documentário da Netflix, é permitido que uma pessoa doe esperma para gerar até 25 bebês. Jonathan Jacob Meijer, considerado um “macho alfa” e garanhão em reprodução humana, é um homem de 43 anos que ficou conhecido em 2017, após um tribunal da Holanda ordenar que ele parasse de doar esperma a clínicas de fertilidade. Ele já era pai de mais de 100 bebês só naquele país, onde a lei limita a até 25 crianças.
Agora, várias mulheres, em sua maioria de casais homoafetivos, que usaram o sêmen de Meijer, aparecem na série para contar os dramas e peripécias desse super doador, que aparentemente tinha planos audaciosos de mudar a humanidade com seu genoma ou ganhar notoriedade instantânea com suas baboseiras nas redes. No documentário, elas relatam como foram enganadas por esse personagem bizarro e egocêntrico.
O caso voltou à tona em 2023, quando se descobriu que ele não estava cumprindo a ordem do tribunal. Meijer continuou a vender seu esperma, e autoridades holandesas estimaram que ele tinha até mil filhos, ou mais, espalhados pelo mundo. Seu comportamento foi observado em outros homens ao redor do planeta, especialmente na África, onde pregavam o “clareamento” genético.
A acusação contra Meijer revelou que ele havia mentido deliberadamente para centenas de famílias sobre o número de bebês que havia gerado. Existem bancos de sêmen no Brasil, mas a legislação e o tratamento do “produto esperma” aqui são bem diferentes da Europa e dos EUA.
Decidida a realizar o sonho de ser mãe, Andrea (nome fictício), de 35 anos, procurou uma clínica de reprodução humana assistida (RHA) no final de 2022. Solteira, ela precisou recorrer aos bancos de sêmen. Seu médico lhe indicou dois: um brasileiro e um americano. “Primeiro, fui atrás do nacional, mas, quando vi que só tinha meia dúzia de doadores, desisti. O estrangeiro oferecia uma quantidade infinitamente maior e também muito mais informações sobre cada um”, afirma Andrea, grávida de 25 semanas de um menino.
O casal Regina, de 35 anos, e Tatiana, de 39 anos (nomes fictícios), seguiu pelo mesmo caminho e pelos mesmos motivos. “Optamos pelo banco estrangeiro porque ele tinha dados detalhados sobre o doador, inclusive fotos. Para mim, era importante encontrar um com características parecidas às da minha esposa, pensando na criança, para facilitar a vida dela ao se identificar com as duas mães”, diz Tatiana, grávida de 30 semanas de uma menina.
Ainda existem poucos bancos de sêmen no país, o que geralmente dificulta encontrar amostras com as características desejadas pelos futuros pais. Em contrapartida, a oferta de doadores no exterior conta com uma ampla disponibilidade de acesso às suas características físicas, intelectuais e psicológicas. É possível até ver fotos de infância e escutar suas vozes.
Com a nova notoriedade do caso após o lançamento da produção, o picareta Meijer veio a público declarar que a minissérie é “enganosa”. À BBC Radio 4, ele disse: “Acho que a Netflix fez um ótimo trabalho selecionando cinco famílias [que estão infelizes] das 225 famílias que eu ajudei, e elas definitivamente contariam outra história”.
Os avanços da genética e do individualismo no comportamento humano abrem espaço para aberrações como esses oportunistas “machos alfa super reprodutores”. A condução da reprodução de seres humanos ideais tornou-se um comércio, facilitando o acesso e a escolha das características para quem pode pagar por isso, mas as consequências estão começando a aparecer. É hora de reflexão e regulamentação.