A nova série “Decameron”, disponível no canal pago Netflix, é uma verdadeira ode à adaptabilidade da literatura clássica, trazendo à tona novas perspectivas e relevância contemporânea a partir da obra de Giovanni Boccaccio (1313-1375). Criada por Kathleen Jordan, a série consegue transformar a clássica narrativa medieval em uma produção envolvente e dinâmica, ainda que se distancie do texto original em diversos aspectos.
O ponto de partida é dos mais intrigantes: um grupo de nobres florentinos se retira para um castelo durante a devastadora peste negra, que devastou mais de 50% da população europeia. Esse conceito já é familiar aos leitores do clássico literário, mas a série faz um ótimo trabalho ao recolocar a trama em um contexto visualmente rico e dramaticamente instigante. Em vez de focar estritamente nos contos, a narrativa amplia o escopo, explorando as relações entre os personagens de forma mais profunda, revelando medos, desejos e anseios humanos que transcendem a temporalidade. Os contos que surgem ao longo da série capturam a essência dos temas boccacianos: amor, tragédia, comédia e moralidade.
A combinação desses elementos, remasterizados para o público atual, empresta à narrativa uma leveza e um frescor que certamente conquistam novos espectadores, mesmo aqueles que não estão familiarizados com o trabalho de Boccaccio. As histórias abordam dilemas modernos que ecoam as questões da Idade Média, trazendo uma importante intersecção entre passado e presente. A produção se destaca não apenas pela escrita inteligente e adaptativa de Jordan, mas também pela magnífica produção visual, que traz a Florença do século XIV à vida de maneira esplêndida. A atenção aos detalhes, desde os figurinos até a ambientação, proporciona uma experiência imersiva que faz o espectador sentir-se parte desta rica tapeçaria narrativa.
Embora a série não mantenha uma fidelidade rigorosa ao texto original, essa interpretação livre é uma escolha ousada e bem-sucedida. Em vez de simplesmente retratar as histórias de Boccaccio, “Decameron” se permite reinterpretá-las sob uma nova luz, focando no que realmente importa: a natureza humana. Neste sentido, a série se torna uma reflexão sobre a luta individual e coletiva frente a adversidades, assim como a busca por significado e conexão em tempos de incerteza. Os contos narram histórias de amor, lições de vida, situações trágicas e cômicas, piadas eróticas e questionamentos morais. Ao mesmo tempo, é um rico documento sobre o contexto e o cotidiano da vida medieval abalada pela devastação provocada pela pandemia que pôs em xeque a religião católica, as condições sociais e econômicas e provocou grandes mudanças em todo o continente europeu.
Em 1971, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini abriu sua Trilogia da Vida – composta ainda pelos filmes “Contos de Canterbury” (1972) e “As mil e uma noites” (1975) – exatamente com o “Decameron”, selecionando da obra de Boccaccio nove histórias e reinterpretando-as a partir de uma estética pessoal onde destaca o grotesco e o anedótico das situações de modo a mostrar como a comédia e a tragédia fazem parte da vida. Perpassado pelo humor, o filme de Pasolini aborda as desigualdades sociais, a corrupção social e religiosa, a sexualidade e a entrega desenfreada à luxúria e aos prazeres.
Apesar das diferenças em relação ao clássico, fica claro que “Decameron” respeita suas raízes literárias ao celebrar a complexidade das vivências humanas. Uma série imperdível que não só proporciona entretenimento, mas que também instiga reflexões sobre a moralidade, sociedade e a condição humana em tempos de crise. Em suma, “Decameron” é uma produção que promete encantar tanto os amantes da literatura quanto novos espectadores, reafirmando que as histórias contadas há séculos ainda ressoam de maneira poderosa em nossos dias. A série é, sem dúvida, uma leitura de um clássico de forma valiosa e vibrante ao panorama atual das produções de streaming. Uma oportunidade de se deixar envolver por essa narrativa.