Pouco ouvimos falar sobre a Somália, um dos países mais corruptos do mundo e que enfrenta uma guerra civil intermitente. A África, como um todo, aparece através da mídia de maneira estereotipada, como se fosse um grande bloco homogêneo de miséria e doenças.
Felizmente, a multiplicidade étnica e cultural dos países africanos tem ganhado visibilidade internacional com a nova leva de escritores e escritoras oriundos de lá: o sul-africano ganhador do prêmio Nobel J. M. Coetzee, o moçambicano Mia Couto, os angolanos Agualusa e Ondjaki, as nigerianas Chimamanda Adichie e Nnedi Okorafor e, mais recentemente, a escritora britânica de origem somali Nadifa Mohamed.
Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, capital da Somália, em 1981, mas mora na Inglaterra desde os cinco anos de idade. Estreou na literatura com o romance Black Mamba Boy (sem tradução para o português) em 2010, baseado na história do seu próprio pai nas décadas de 1930 e 1940 no Iêmen, durante o período colonial.
O segundo romance de Mohamed, que acaba de ser publicado no Brasil pela Editora Tordesilhas, O pomar das almas perdidas (295 páginas, tradução de Otacílio Nunes), se passa em Hargeisa no final da década de 1980.
A história é contada sob a perspectiva de três mulheres de diferentes gerações: uma criança, uma jovem e uma senhora. Deqo, de nove anos, nasceu em um campo de refugiados onde há um surto de cólera e desconhece seus pais. Sua esperança é ganhar um par de sapatos em uma apresentação de dança. Por errar a coreografia, Deqo é punida e fadada a vagar pelas ruas de Hargeisa. Kwasar, uma viúva destinada a lamentar a morte da filha, assiste à apresentação de Deqo e, numa tentativa de defendê-la, é presa e espancada por Filsan, o jovem soldada que deverá deixar a capital para conter a rebelião do norte do país.
Após o rápido encontro entre as três protagonistas, o leitor é convidado a seguir a vida de cada uma isoladamente, para um novo encontro ao final da narrativa.
A prosa de Mohamed é descritiva, quase cinematográfica, com parágrafos curtos, diretos, crus, mas nem por isso sem poesia: acompanhamos os passos das três heroínas por uma Hargeisa suja e caótica, “uma cacofonia de frangos carcarejantes, jumentos zurrantes que resistem aos arreios, meninos de uniforme escolar brincando de brigar, mulheres sacudindo baldes de comida aos pés das cabras e o som cadenciado de meninas adolescentes batendo em tapetes com galhos”.
Para além do cenário dessa Somália não idealizada, cujo pano de fundo expõe um regime militar extremamente corrompido, o que surpreende no romance de Mohamed é a perspectiva feminina e a quase ausência de personagens masculinos. A sororidade – solidariedade entre mulheres – está presente quando Kwasar divide as refeições com suas colegas de cela, ou quando uma prostituta acolhe a pequena Deqo e a leva para o seu bordel onde, curiosamente, as prostitutas utilizam codinomes como Karl Marx, Stálin e China.
Outras problemáticas do cotidiano feminino também são retratadas no romance: a educação que a pequena Deqo recebeu no campo (“A única educação que recebeu das mulheres, no campo de refugiados, dizia respeito a como evitar essa vergonha: não sente com as pernas abertas, não toque as partes íntimas, não brinque com meninos. A evitação da vergonha parece estar no centro da vida de uma menina”) ou o assédio que a jovem soldada Filsan sofre dos seus superiores (“Mesmo estando de uniforme, os homens não veem nada além de peitos e um buraco”), não sendo reconhecida no exército devido à sua condição.
Com apenas dois romances publicados, Nadifa Mohamed está entre as melhores jovens escritoras britânicas segundo a revista Granta. Para além de descortinar um país quase desconhecido, Mohamed trata de temas universais tão caros a nós, mulheres.