Em troca de R$ 2,7 bi, ‘lava jato’ ajudou Estados Unidos a obter R$ 20 bi da Petrobras

Atualizado em 9 de outubro de 2024 às 18:07
Procuradores da Lava Jato. Foto: Divulgação

Os R$ 2,7 bilhões recebidos pelo Ministério Público Federal de Curitiba das multas aplicadas à Petrobras nos Estados Unidos foram uma recompensa dada à “lava jato” por ter ajudado autoridades americanas a conseguir R$ 20,1 bilhões da estatal brasileira, e não “recuperação de dinheiro público”, como venderam os procuradores do Paraná.

Essa é a conclusão da tese de doutorado “A Hegemonia Estadunidense e o Combate à Corrupção no Brasil: O caso da Operação Lava Jato”, de autoria de Arthur Pinheiro de Azevedo Banzatto, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul.

A primeira sanção contra a Petrobras ocorreu em janeiro de 2018, quando a empresa fechou um acordo de US$ 2,95 bilhões (R$ 9,6 bilhões, na cotação da época) para encerrar uma disputa judicial com acionistas privados americanos que ingressaram com uma ação coletiva nos Estados Unidos. Eles alegaram prejuízos por causa de esquemas de corrupção ocorridos no Brasil. Todo o valor foi destinado aos acionistas.

O segundo acordo, de US$ 853,2 milhões (R$ 3,4 bilhões), foi fechado em setembro de 2018 com o Departamento de Justiça por suposta violação ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA, na sigla em inglês), norma que permite que autoridades dos EUA investiguem e punam fatos ocorridos em outros países.

O único valor da Petrobras que voltou ao Brasil foi parte dessa multa: 80% do valor, ou US$ 682 mil (R$ 2,7 bilhões), foram destinados ao MPF brasileiro. Os 20% restantes foram divididos entre o Tesouro dos Estados Unidos e a Comissão de Valores Mobiliários americana (SEC, na sigla em inglês).

Também em setembro de 2018, a Petrobras foi multada em US$ 1,78 bilhão (R$ 7,1 bilhões) em um processo administrativo da SEC. Todo o valor foi destinado à própria Comissão de Valores Mobiliários.

Os dados estão na tese de doutorado de Banzatto, publicada em outubro de 2023 e produzida com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Todos os valores referentes às multas têm como base a cotação do dólar na época em que as sanções foram aplicadas.

Sede da Petrobras, no Rio de Janeiro. Foto: Mario Tama/Getty Images

Recompensa

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o pesquisador afirma que, embora a “lava jato” tenha tratado os R$ 2,7 bilhões como um valor recuperado, trata-se, na verdade, de uma espécie de recompensa pela ajuda dada pelos procuradores às autoridades americanas.

A atuação do MPF parece contraintuitiva: se por um lado os Estados Unidos viram uma oportunidade de punir a Petrobras e garantir seus interesses ao atuar em favor de empresas americanas, por outro os procuradores de Curitiba prejudicaram a estatal fora do Brasil deliberadamente para tentar colher uma parcela do dinheiro e criar a famigerada “fundação” da “lava jato”.

A entidade privada, que seria gerida pelos procuradores, só não foi adiante por ter sido barrada pelo Supremo Tribunal Federal. Foi só a partir da decisão do STF que os R$ 2,7 bilhões foram, de fato, para a União.

“O MPF adotou um discurso em que afirmou que esse é um dinheiro ‘recuperado’. Quando, na verdade, não é. É uma multa que foi aplicada com a ajuda do MPF e ele recebeu um valor por ter ajudado. E esse era o dinheiro que iria para a fundação ‘lava jato’”, afirma Banzatto.

Segundo ele explica, a parceria da “lava jato” com as autoridades dos EUA se deu toda de forma irregular, fora dos canais oficiais. Colaborações regulares devem ser feitas por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), órgão vinculado ao Ministério da Justiça.

A atuação ilegal do MPF se deu com o compartilhamento de provas com autoridades dos EUA. Investigadores do FBI chegaram a ser recebidos no Brasil a partir de 2015, sem autorização do Ministério da Justiça. No ano seguinte, os americanos conduziram interrogatórios de ex-diretores da Petrobras e fizeram acordos, também sem qualquer autorização.

“O MP intermediou esse acordo da Petrobras com o DoJ (Departamento de Justiça dos EUA), compartilhou provas e conteúdos de delação, fora dos canais oficiais. O MP foi fundamental, tanto que foi beneficiado.”

De acordo com o pesquisador, existe, de fato, uma cifra que pode ser classificada como “recuperada”: a dos acordos fechados no Brasil entre o MPF e colaboradores, em que parte de valores que teriam sido obtidos por meio de corrupção foi devolvida por investigados.

Já nos EUA, diz Banzatto, o que houve foi uma recompensa, uma vez que o MPF topou ajudar uma estatal brasileira a ser punida fora do Brasil em troca da parcela de uma das multas.

“O Ministério Público, que em tese deveria atuar pelo interesse nacional, atuou contra o patrimônio brasileiro. É o contrário do que ocorre no restante do mundo, em que os Estados usam seus sistemas jurídicos para alavancar suas empresas, para gerar dinheiro e emprego para seu próprio Estado.”

Rastro de destruição

A pesquisa de Banzatto apresenta dados, com base em levantamentos do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), sobre os efeitos da “lava jato” na Petrobras e em outras empresas brasileiras, como a Odebrecht.

A construtora e a Braskem foram multadas no final de 2017 em US$ 3,6 bilhões (R$ 11,6 bilhões), também com a ajuda da “lava jato”. O acordo feito à época previu a devolução de 80% do valor ao MPF. Os 20% restantes foram divididos igualmente entre autoridades dos EUA e da Suíça. Trata-se da maior multa aplicada por meio do FCPA até hoje.

No caso da Petrobras, o volume de investimento em exploração e produção era de US$ 48,1 bilhões em 2015. No ano seguinte, no auge da “lava jato”, caiu para US$ 15,8 bilhões.

A partir dali, o crescimento do investimento em exploração, produção, refino, biocombustíveis e ciência e tecnologia deu lugar ao modelo exclusivo de exploração e produção que existia antes do pré-sal, em 2006.

“A Petrobras passou por uma mudança radical em sua política. Ela abriu mão de ser uma empresa estratégica, de investir em conhecimento local, ciência e tecnologia e refino, e voltou ao modelo dos anos 90, quando só havia exploração”, explica o pesquisador.

O mesmo fenômeno ocorreu com a Odebrecht, segundo o levantamento de Banzatto. Em 2014, a empresa tinha uma receita bruta de US$ 107 bilhões; em 2019, ela caiu para US$ 78 bilhões.

O número de empregados da companhia diminuiu, nos mesmos anos, de 168 mil para 35 mil. E a presença internacional também despencou: em 2014, a Odebrecht atuava em 27 países; cinco anos depois, em 14.

Publicado originalmente no ConJur

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