É impressionante como o ex-apresentador global Tiago Leifert não acerta uma. Primeiro, ele negou que o jogador Vini Jr. tenha sofrido racismo no Bola de Ouro 2024, sugerindo que o jogador deveria ter comparecido à premiação – tendenciosa desde o início – mesmo sabendo que não ganharia:
“O Vini Jr. deveria ter ido. Vini, não caia na pilha do Real Madrid, você deveria ter ido. Chegar lá, peito estufado, olhar nos olhos dos jornalistas que não votaram em você, receber o carinho das pessoas que assistiram do lado de fora e falar: ‘Quero a câmera na minha cara, para o mundo inteiro me ver bater palmas para esse povo.’ Se você tivesse ido, teria sido o campeão moral e isso seria absurdamente legal”, comentou.
(Imagine: o trabalho do cara é comentar, e ele comenta uma barbaridade dessas.)
Depois, tentou consertar a situação chamando a influenciadora Sara Zarâ para uma live de explicações ao público (um clássico), mas só levou críticas.
Tiago Leifert no 'TiaGOL', sobre a premiação da Bola de Ouro e Vinicius Jr.
“O ambiente não era hostil; o ambiente era de futebol. Ele é maior que a Bola de Ouro, ele é maior que a UEFA. Se ele tivesse ido à cerimônia, seria ovacionado.”
?️: TiaGOLpic.twitter.com/UtZq039gg7
— LIBERTA DEPRE (@liberta___depre) October 31, 2024
Detalhe: a influenciadora é negra, e Tiago claramente tentou usá-la para melhorar sua imagem com o público – nada mais conveniente do que o apoio de uma mulher negra com mais de 400 mil seguidores – mas deu tudo errado.
Sara discordou do apresentador ao vivo e disse o que todos queriam dizer:
“Aquela orientação que você deu não cabe em nenhum contexto, nem mesmo no futebol. A Bola de Ouro é injusta há bastante tempo, é um prêmio individual polêmico por ter cometido muitos erros nos últimos anos”, disse.
“São 100 jornalistas de 100 países, um de cada país. O Vini perdeu porque foi vítima de racismo?”, questionou Tiago.
Sim, meu caro, e essa é a profundidade do racismo estruturado e ainda praticado pela branquitude, desde as grandes questões até os mínimos detalhes.
“Eu não acho que seja por isso, não”, respondeu a influenciadora. “Então, já temos um problema. A minha fala não é racista”, ressaltou o apresentador, e esse é um diálogo didático.
O problema cognitivo da branquitude provém, sobretudo, de sua constante preocupação em negar ou justificar o próprio racismo, criando uma falsa polêmica que se resolveria com um pouco de autocrítica.
Ninguém se importa com o que nós, brancos, temos a dizer sobre o racismo, e é exatamente assim que deve ser. Não estou falando de “lugar de fala” (não acredito nesse conceito), mas do mínimo respeito à luta antirracista das pessoas negras deste país.
Devemos assumir um lugar de escuta e compreender suas demandas e dores diante do racismo estrutural, e não esperar que elas nos ouçam caladas, como sempre foi.
Sim, a “orientação” de Tiago foi inadequada e audaciosa, especialmente por pretender orientar uma pessoa negra sobre como resistir ao racismo – algo que Vini Jr. faz com maestria.
Sara foi necessária ao apontar que “pessoas da bolha de Tiago têm dificuldades em entender que não só o Vinicius como todo indivíduo preto passa por provocações ou crimes de racismo o tempo todo.”
A influenciadora destacou que foi preparado um ambiente hostil para o jogador, que tem sido vítima de ofensas racistas reiteradas dentro e fora da internet, dos torcedores até às curadorias de prêmios como o Bola de Ouro.
O problema cognitivo da branquitude é, enfim, sua dificuldade em deixar de se enxergar como o centro de qualquer questão e ouvir as vozes da verdadeira luta antirracista no Brasil.
Ao dizer que Vini Jr. deveria ter ido ao Bola de Ouro “mesmo sabendo que ia perder”, Tiago demonstra, mais uma vez, sua incompreensão acerca do boicote como forma de resistência e afirmação. Uma pessoa negra não precisa frequentar ambientes que lhe são hostis para ser, de fato, “resistência”.
Além disso, a questão aqui não é ganhar ou perder, é boicotar uma competição injusta. Não há que se discutir se Vini Jr. sofre racismo ou não, isso é um fato irrefutável: o jogador já sofreu tanto racismo que hoje é considerado um símbolo da resistência antirracista no futebol. É inacreditável que o racismo no Brasil ainda seja tão profundo a ponto de termos um jogador negro que sofre ofensas racistas em diferentes ocasiões e de várias formas, todas tão óbvias aos olhos de todos, e que depois ainda tenha que ouvir um comentarista branco opinando sobre sua vida e escolhas.
Diante desse abismo, e da dificuldade cognitiva da branquitude de entender seu lugar, só posso fazer minhas as palavras de Bruno Gagliasso:
Tiago Leifert, calado, é um poeta.
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