Anistia: você tem medo de quê? Por Kakay

Atualizado em 7 de novembro de 2024 às 0:32
Ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Foto Gabriela Biló/Folhapress

Em tudo na vida, é importante saber a hora de agir, ou, pelo menos, saber cobrar posições quando a decisão não depende de nós. No meu escritório, somos seis advogados. Optei por uma estrutura enxuta, na qual tudo passa por mim e por todos. Temos o hábito, já consolidado, de fazermos uma viagem juntos, pelo menos uma ou duas vezes por ano. Só nós: Paris, Lisboa, Courchevel, Montevidéu, Punta del Este… Estamos sempre em algum lugar do mundo.

Certa vez, estávamos em Paris, no meu apartamento, e uma advogada acordou muito mal. Parecia que ia morrer. Tentamos o seguro saúde da American Express, que havia sido comprado para a viagem, mas não conseguimos nada. Falei várias vezes com a mesma atendente e nada de ela disponibilizar um médico. À tarde, consegui um médico amigo, e logo ela estava curada. Era apenas ressaca.

No dia seguinte, no final da manhã, ligou a assistente do seguro saúde. Quando ela começou a falar que havia conseguido um médico, eu a interrompi: “Minha colega faleceu nesta noite, e estamos tratando do traslado do corpo!” Perplexidade e choro do outro lado da linha. E, ainda, emendei: “Vou processar a empresa e a senhora”, e desliguei o telefone. Ela ligou várias vezes, mas eu não atendi. Já era tarde demais. Havia passado da hora.

Ou seja, em todas as questões, das mais simples às mais sérias, é preciso que saibamos nos posicionar. Por isso, assisti, entre perplexo e incrédulo, à discussão sobre parte do governo apoiar a anistia para os envolvidos nos acontecimentos de 8 de janeiro. Por diversos motivos, ouvi pessoas que respeito defenderem que seria melhor anistiar, pois isso facilitaria a tentativa de reeleição de Lula. O Bolsonaro seria descartado e, portanto, o melhor adversário.

Além disso, vi uma pregação sobre anistiar os condenados, mas que não teriam tanta responsabilidade. Ora, até onde sei, quem decide sobre a responsabilidade criminal é o plenário do Supremo Tribunal Federal. E não estamos tratando de um caso simples, trivial. O que ocorreu foi uma tentativa de golpe de Estado, de subversão da ordem constitucional, de ruptura institucional.

Se tivesse dado certo, não estaríamos aqui escrevendo artigos ou discutindo anistia. Se a Ditadura tivesse sido instaurada, será que o ex-presidente Bolsonaro estaria falando em perdão? Em pacificação nacional? E os militares, generais e outros que arquitetaram o golpe, iriam apoiar eleições livres e conviver com aqueles que tentaram tirar à força da vida pública? E os financiadores, que certamente tinham interesse em lucrar com o golpe, iriam abrir mão das negociações pelas quais colocaram dinheiro para sustentar o movimento golpista? Enfim, a história é escrita por quem vence. Se tivessem vencido os golpistas, qual seria o destino dos derrotados, no caso, nós?

O tema da anistia virou moeda de troca. Serve para a disputa pela presidência da Câmara, para a composição de um possível novo ministério e até como motivo emocional — veja o ridículo apelo feito por Bolsonaro a Lula para que ele liderasse um movimento pela anistia. É tanta desfaçatez que as pessoas nem ficam coradas.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Ton Molina/Getty Images

Ameaçam ministros do Supremo, afrontam as instituições, depredam as sedes dos Três Poderes, tentam resistir e tomar o poder por não aceitarem o resultado das urnas e ensaiam um golpe com apoio econômico, militar e político. Quando são derrotados, querem fazer parecer que não era sério, que era apenas um ensaio, uma brincadeira. E ainda encontram advogados para defender que não houve golpe, no máximo uma tentativa. Ora, se o golpe tivesse vingado, seríamos nós os julgados, presos, exilados ou mortos. O crime é a tentativa de golpe, porque, se o golpe ocorre, não há crime, há uma mudança na ordem institucional, e quem vence escreve as regras.

Daí a importância da fala do ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, que, no dia 31 de outubro, afirmou estar indignado com a proposta e disse que o perdão aos criminosos seria “uma agressão à população brasileira”. E, de forma técnica, afirmou o que deve ser um mantra entre nós, democratas: uma anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro e pelos envolvidos na preparação do golpe é inconstitucional.

Não tenhamos dúvidas de que qualquer projeto que se apresente de forma tímida, com a justificativa de anistiar os “pobres coitados” que serviram de bucha de canhão, visa, no fundo, anistiar aqueles que sequer foram denunciados. O objetivo final é favorecer os generais e outros militares graduados, os políticos que participaram da trama, os financiadores que sustentaram o movimento visando lucro e, claro, o ex-presidente Bolsonaro e seu círculo mais próximo. Nenhum deles moveria um dedo para anistiar somente os que já foram presos e condenados. É tudo uma encenação grosseira.

A única parte que pode nos sensibilizar é apoiar vigorosamente os processos contra o grupo ainda não denunciado. Vamos esperar que sejam logo processados e, com o uso constitucional da ampla defesa, sejam condenados. Aí, já presos, eles poderão voltar ao tema da anistia. Afinal, a anistia atinge todos os efeitos penais decorrentes da prática do crime. Então, se Bolsonaro e sua turma alegam que não houve tentativa de golpe, que não houve crime, por que o tema da anistia está em pauta?

Remeto-me ao poeta Torquato Neto, no poema Cogito:

eu sou como eu sou vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim.”

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