Hoje fui xingada de puta e sapatão, talvez pela milésima vez, quando disse (grosseiramente, e não há como ser diferente) para que um estranho não me tocasse. Ele tocou a minha cintura dizendo coisas que eu não queria ouvir de um desconhecido – nenhuma mulher gostaria – e, diante da minha negativa, decidiu que apenas as ofensas mais agressivas poderiam salvá-lo do sentimento de afronta e derrota.
Homens, em sua maioria, não são aptos a lidarem com o não. Como crianças que nunca foram devidamente educadas por seus pais, eles parecem acreditar que absolutamente nada lhes pode ser negado porque, como machos, absolutamente tudo lhes pertence por direito – inclusive o corpo alheio (e a alma, se não tivermos sorte).
Esse parece ser o caso de Rodrigo Augusto de Pádua, de 30 anos, que invadiu, armado, o hotel em que estava hospedada Ana Hickmann, por quem nutria uma obsessão antiga.
E chamo de obsessão porque sequer o vocabulário me oferece palavra mais própria, provavelmente diante da mania moderna de eufemização permanente daquilo que agride às minorias, a ponto de as coisas mais repulsivas, por vezes, não terem sequer um nome, apenas para não corrermos o risco de falar delas.
E chamo, também, porque Rodrigo claramente mantinha uma fixação medonha por Ana Hickmann – o padrão de mulher perfeita feito justamente para tornar-se o objeto de desejo de um homem (um desejo às vezes moderado e, noutras vezes, criminoso).
No twitter dele, muitos elementos que denunciam suas intenções: declarações insanas para a ex-modelo e mensagens com conteúdos pornográficos. De todas essas declarações que beiram o ininteligível, há uma, a mais intrigante, que, para bom entendedor, denota as intenções de Rodrigo para com o sentimento de posse daquilo que jamais possuíra, com o que não conseguia lidar:
“Para um dia eu poder dizer que te amo sem medo de estar errado, é preciso que este lindo sorriso deixe de iluminar a minha alma, o seu olhar não mais penetre nos meus pensamentos, o seu rosto deixe de guiar o meu horizonte, o seu corpo de pulsar forte o meu sangue, a sua voz de me enlouquecer, e você por completa não fazer o meu coração bater de maneira tão forte e descompassada como tem acontecido todos os dias desde que te ~conheci~! Então, meu amor, você acha possível eu deixar de te amar?”
Para um desavisado, isso pode parecer poético, mas é só a corriqueira romantização dos comportamentos violentos e ditos como “passionais”.
E para que aquele ‘lindo sorriso deixasse de iluminar-lhe a alma’, Rodrigo precisava agir.
Ele entrou no hotel em que Ana Hickmann estava, em Belo Horizonte, e rendeu todos os presentes – Ana, o seu marido Alexandre Corrêa, sua assessora Giovanna Oliveira e seu cunhado Gustavo Oliveira – obrigando-os a se sentarem na cama de costas para ele e gritando palavras ofensivas para a ex-modelo, as mesmas palavras ofensivas que nos gritam todos os dias quando dizemos não.
Em defesa de si mesmo e dos demais, o cunhado Gustavo levantou e andou na direção de Rodrigo, que disparou duas vezes e, contido por Alexandre e pelo próprio Gustavo, acabou baleado e morto.
Rodrigo acabou tendo o destino que desejava para a sua vítima- e sobre isso, esqueçam, não há o que ser dito; a toda ação cabe uma reação, e a cada situação de perigo cabe uma maneira própria de defesa, e isso é tão óbvio que não faz sentido que seja discutido.
Quando um homem se sente no direito de tentar tirar a vida de uma mulher com quem deseja e não pode se relacionar, nós não podemos chamar isso de doença, de loucura e muito menos de amor.
Rodrigo foi criado pela mesma cultura patriarcal que pariu o cara que me xingou de puta e sapatão mais cedo. Ambos partilham do mesmo sentimento de inconformismo diante da negativa de uma mulher porque, diante destes produtos da cultura patriarcal, uma mulher não é apenas um ser humano com quem outro ser humano pode se relacionar. É um objeto que denota poder.
O fato é que homens que agridem e matam – ou, como neste caso, tentam – mulheres movidos pelo sentimento de posse atitude violenta e obsessiva provavelmente não serão encarados como destoantes do que se já tem visto, porque ao homem é permitido “matar por amor.”
Não é de hoje, e não só com mulheres belíssimas e inatingíveis, eles o fazem. Como no recente caso da professora morta pelo próprio companheiro dentro da escola em que trabalhava. Os jornais noticiaram que o homem estava movido pelo ciúme porque amava muito a sua esposa.
Quando pegou uma arma e hospedou-se num hotel próximo de sua obsessão, Rodrigo, para muitos, também estava movido pelo amor, mas, na realidade, o que existe é uma assustadora cultura de ódio para com as mulheres que não podem servir à conveniência masculina, qualquer que seja a situação.
Ana Hickmann não podia servir à conveniência da obsessão de Rodrigo, por isso, sua vida não deveria ser poupada.
Muitas outras mulheres são vítimas da mesma ideia, mas longe de cunhados armados ou de seguranças atentos. Muitas mulheres, como a professora de escola primária soteropolitana, são mortas pelos homens que acreditam amá-las e isso é assustadoramente naturalizado.
A morte não santifica ninguém, e não redimirá a quem, movido por uma obsessão que não tem sequer um resquício de amor, acabou sendo vítima da desgraça que provavelmente pretendia.
O amor não mata. O machismo sim.