UMA DAS FICÇÕES esportivas mais bizarras é que o futebol é diferente dos demais esportes. Isso só faz sentido diante do fato óbvio de que todos os esportes são diferentes. Uns são jogados com os pés, outros com as mãos, e por aí vai.
Essa ficção está por trás do maior absurdo futebolístico destes tempos: a ausência de tecnologia para tirar dúvidas em lances capitais. Beckenbauer, o Kaiser, antes o maior jogador alemão e hoje integrante do comitê executivo da Fifa, voltou há pouco a falar nas supostas diferenças para defender a manutenção do desprezo à tecnologia. “O futebol não é como os demais esportes”, disse ele. Haveria interrupções que atrapalhariam a marcha do jogo, segundo Beckenbauer, em cuja carreira gloriosa cintila uma semifinal contra a Itália na Copa de 70 em que permaneceu heroicamente no campo com atadura depois de ter deslocado o ombro.
Um momento.
Interrupções? Nada interrompe tanto uma partida como lances duvidosos. Uma das cenas mais comuns do futebol são jogadores indo para cima de juízes e bandeirinhas depois de marcações discutíveis. Basta, como se fez no tênis, estipular as regras do uso da tecnologia. Cada time poderia demandar a revisão de um lance duas vezes por tempo, por exemplo. O juiz também.
Todos ganhariam, exceto os beneficiados pelos erros.
O presidente da Fifa, Sepp Blatter, em sua louca cavalgada antitecnológica, afirmou que o futebol perderia a “humanidade”supostamente expressa nos erros dos juízes.
Um momento.
“Humanidade”? Que existe de humano em erros que distorcem resultados, destroem méritos, geram um sentimento justificado de revolta em milhões de torcedores e não raro liquidam a carreira de um juiz? O erro no gol não dado para a Inglaterra no jogo contra a Alemanha, por exemplo: como aceitá-lo quando ele poderia ter sido evitado? Como enxergar nele algo que promove o “espírito único” do futebol?
A Fifa veladamente admitiu a obsolescência do sistema em vigor de arbitragem ao estipular que, num torneio que começará em breve, os juizes serão ajudados por um auxiliar atrás de cada gol. E empurrou, para a frente, a discussão da tecnologia.
O FUTEBOL, ao contrário do que propaga tanta gente ligada a ele, é um esporte como todos os demais, apenas mais popular. A maior diferença do futebol para outros esportes populares é, na verdade, a resistência de seus dirigentes a usar recursos que só podem melhorá-lo.