Em uma decisão digna da surreal justiça brasileira, o juiz Olavo Zampol Junior da 10ª Vara da Fazenda Pública considerou o fotógrafo Sergio Silva (cego do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar), culpado. Você leu certo, culpado. Para o juíz, Sergio é o único responsável por sua tragédia ao se expor ao risco enquanto fotografava. Sendo assim, indeferiu o pedido de indenização impetrado pela vítima contra o Estado de São Paulo.
“Ao se colocar entre a polícia e os manifestantes, permanecendo em linha de tiro para fotografar, colocou-se em situação de risco assumindo com isso as possíveis consequências do que pudesse acontecer, exsurgindo desse comportamento causa excludente de responsabilidade onde, por culpa exclusiva do autor, voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto”, posicionou-se o juíz.
É acintoso, para dizer o mínimo. Não era uma guerra (ou, pelo menos, não era para ser). Era um protesto contra o aumento da tarifa do transporte público. Classificar como ‘confronto’ um episódio em que um dos lados está fortemente paramentado de armamentos e munições enquanto o outro lado é composto de jovens desarmados é patético. Sergio também não ‘ficou na linha de tiro’. Procurou abrigo atrás da banca de jornal localizada na esquina da Consolação com Caio Prado. Estava ali quando foi atingido. E estar ‘entre a polícia e os manifestantes’ é algo pra lá de vago.
Naquela noite de 13 de junho de 2013 a polícia transformou a manifestação encabeçaba pelo Movimento Passe Livre num cenário de terror. Nada menos que 506 tiros de balas de borracha foram disparados de maneira indiscriminada (e criminosa) contra manifestantes, imprensa, pedestres desavisados. Motoristas sufocaram dentro de seus carros devido a quantidade apocalíptica de bombas de gás lacrimogêneo e centenas de feridos precisaram de socorro ao serem atingidos por estilhaços de bombas de ‘efeito moral’. Uma sanha assassina e insaciável como poucas vezes foi visto. De surpreendente mesmo foi não haver um cadáver no 13 de junho de 2013.
Sergio Silva disse que irá recorrer e que já previa o resultado. “O que me resta é entrar com recurso apelando sobre essa decisão que já era esperada devido ao processo histórico do funcionamento do setor judiciário: decidem à favor do Estado patrão.”
Não era mesmo para esperar algo diverso. A PM já tinha cegado um outro fotógrafo no ano 2000 e a sentença foi idêntica. Alex Silveira cobria um protesto de professores em julho daquele ano e foi atingido no olho por uma bala de borracha. Perdeu 90% da visão. Quatro anos depois, em setembro de 2014 o Tribunal de Justiça-SP em decisão de segunda instância considerou o próprio fotógrafo culpado. O relator da decisão avaliou que “a repressão policial ‘mais enérgica’, com bombas de efeito moral e disparos de balade borracha, se fez necessária na ocasião devido ao bloqueio da via pública pelos manifestantes, ‘que insistiam nesta conduta ilícita’, inclusive lançando pedras, paus e coco nos policiais.”
“Permanecendo, então, no local do tumulto, dele não se retirando ao tempo em que o conflito tomou proporções agressivas e de risco à integridade física, mantendo-se então no meio dele, nada obstante seu único escopo de reportagem fotográfica, o autor colocou-se em quadro no qual se pode afirmar ser dele a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima.” O fotógrafo Alex Silveira ainda teve de arcar com as custas do processo.
“O estado reage no âmbito jurídico dando continuidade à violência do instrumento de força que age na rua. O judiciário repete a violência”, disse-me Sergio lá em 2013, um mês após a fatalidade e demonstrando a pouca credibilidade que a justiça brasileira detém. O fotógrafo ainda estava transtornado com o que lhe ocorrera, o globo ocular totalmente destruído por um ‘elastômero’, como freelancer estava sem trabalho, sua vida havia virado de cabeça para baixo mas a certeza de que a justiça iria tardar e falhar não lhe escapava. Agora também ele foi considerado culpado.
“A imprensa quando faz coberturas jornalísticas de situações de risco sabe que deve tomar precauções, justamente para evitar ser de alguma forma atingida”, afirmou o juiz Zampol que alega não estar sendo ‘insensível ao drama’ de Sergio Silva.
Já ocorreram casos em que réus avançaram e agrediram ou mesmo mataram juízes dentro de tribunais. É uma situação de risco aplicar uma sentença. O raciocínio seria o mesmo? E se um jornalista assume o risco quando se expõe e ‘pode ser alvejado por alguns dos grupos em confronto’, por que a morte do cinegrafista da Band, atingido por um rojão vindo de manifestantes, teve tratamento diferente? O cidadão pode ser responsabilizado mas o Estado não?
Decisões como as que foram impostas contra Sergio e Alex traduzem nosso judiciário. Querem cegar e calar a todos.