Uma das matérias mais interessantes que cursei no semestre passado, na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, chama-se “Cultura e Pensamento na Índia Antiga I”. Fora os fascinantes textos que constavam na bibliografia oferecida pela professora, Lilian Gulmini, procurei entrar em contato com as mais relevantes obras referentes ao assunto em questão.
Dentre todas, creio que o livro “India – What Can It Teach Us”, transcrição de um curso ministrado pelo orientalista alemão Friedrich Max Müller (1823 – 1900) na Inglaterra, foi o mais interessante e elucidativo.
“Eu não procurarei provar que a literatura sânscrita é tão rica quanto a grega”, afirma Müller, que se dirigia a futuros servidores britânicos na Índia. “Por que essa mania de comparar as coisas? O que eu sei, e espero que venham a entender, é que a literatura sânscrita está repleta de interesses humanos, repleta de lições que até mesmo os gregos seriam incapazes de nos ensinar”.
Tais interesses e lições serão contemplados na Conversa com Escritores Mortos abaixo. A tradução para o português foi feita por mim mesma.
Herr Müller, o que o levou a fazer da Índia Védica e da língua sânscrita seus principais objetos de estudo? O que o encantou nesse período da história da humanidade?
Se perguntassem a mim sob qual céu a mente humana desenvolveu com maior amplitude alguns de seus dons mais preciosos, onde ela deteve-se com mais profundidade sobre as grandes questões da vida, e onde encontrou soluções que merecem a atenção até mesmo daqueles que estudaram as filosofias de Kant e de Platão, eu escolheria a Índia.
O senhor mencionou dois filósofos ocidentais, e me ocorre que há muito em comum entre determinadas filosofias orientais e ocidentais. O estoicismo e o budismo, por exemplo, tem muito em comum. É possível dizer que alguma corrente desses correntes filosóficas foi inspirada pela outra?
Encontramos coincidências estranhas e curiosas entre as lendas e as filosofias da Índia e as lendas e as filosofias do Ocidente, mas por enquanto não somos capazes de afirmar se viajaram do Oriente para o Ocidente, do Ocidente para o Oriente ou são somente meras coincidências.
O senhor pode mencionar uma dessas lendas?
A senhorita se lembra do julgamento de Salomão? Deixe-me lhe contar a mesma história, conforme foi concebida pelos budistas. No Kanjur, que consiste na tradução tibetana da Tripitaka budista, encontramos a história de duas mulheres que afirmaram ser a mãe de uma mesma criança. O rei, depois de ouvi-las durante um longo tempo, declarou que não tinha condições de descobrir quem era a mãe verdadeira. Diante disso Visakha (uma das principais seguidoras de Buda) disse: “Acredito, meu caro senhor, que não devemos dar continuidade a essa discussão. Deixe que elas resolvam a questão entre elas”. Ao ouvi-la, as duas mulheres se lançam sobre o menino. No momento em que a luta se intensifica e se torna mais violenta, a criança é machucada e começa a chorar. Quando ouve a criança chorar, uma das mulheres desiste dele, já que não suporta vê-lo daquela maneira. É isso o que resolve a questão. O rei devolve o bebê à sua verdadeira mãe, e a outra é punida.
Qual é o propósito do estudo da História, na sua opinião?
Estudamos História porque devemos saber de que modo nos convertemos no que somos atualmente, a fim de que cada geração não seja obrigada a começar do zero, que não seja obrigada a arar a mesma terra que seus antepassados, e que, tirando vantagem de toda a experiência daqueles que já fizeram a sua passagem pela Terra, possamos progredir cada vez mais.
O senhor acredita que a visão eurocêntrica da História é prejudicial?
O nosso conhecimento da História universal e do desenvolvimento do intelecto humano será limitado se mantivermos nossos limites restritos à história dos gregos, dos romanos, dos saxões e dos celtas, com alguma compreensão da Palestina, da Babilônia e do Egito, e deixarmos de lado nossos parentes intelectuais mais próximos, os árias da Índia, que foram os criadores da mais bela entre todas as linguagens – o sânscrito –, da mais natural das religiões, da mais transparente das mitologias, da mais sutil das filosofias e também de leis particularmente elaboradas.
Uma parte considerável dos textos que o senhor escreveu e dos cursos que o senhor ministrou foram dirigidos a britânicos que serviriam na Índia. Quais as suas intenções ao dirigir-se diretamente a eles?
Lutar contra o sentimento que se insinua nos corações da maior parte dos jovens ingleses que buscam fortuna na Índia. Esse sentimento os leva a encararem sua estadia na colônia como uma espécie de exílio moral, e a verem os hindus como uma raça inferior, diferente de nós.
Quais as consequências disso?
Não há nada mais desagradável para um jovem do que a ideia de que passará a sua vida entre seres humanos que será incapaz de respeitar ou de amar – nativos, como costumam ser chamados, para não empregar palavras piores –, homens que, segundo ele é ensinado a crer, não são aparentados com os princípios do respeito por si mesmo, da veracidade e da seriedade, o que, naturalmente, entre eles qualquer comunidade de interesse e ação.
E o senhor pensa que essa superioridade não existe?
Eu realmente acredito que não, e que é necessário que deixemos de pensar dessa maneira não só porque tal linha de raciocínio indica tendências autocentradas e pouco caridosas, mas por razões puramente lógicas.
Falemos um pouco das maiores obras literárias compostas na Índia Antiga. O senhor poderia contar-nos o enredo do Râmâyana?
O mais grandioso dos poemas épicos, o Râmâyana, gira em torno de uma promessa feita por Dasaratha, rei de Ayodhyâ, para sua segunda esposa, Kaikeyî, segundo a qual ele lhe concederia dois desejos. A fim de assegurar a sucessão de seu próprio filho, ela pede que Râma, o primogênito, filho do rei com outra de suas esposas, seja banido do reino por 14 anos. Râma não permite que o pai quebre a promessa que fez, e abandona a casa paterna a fim de viver na floresta com sua esposa, Sitâ, e com seu cunhado, Lakshmana. Quando o rei morre, o filho da segunda esposa renuncia ao trono e encontra Râma, a quem tenta persuadir a assumir o lugar que lhe era de direito. Mas o faz em vão, pois Râma tenciona permanecer exilado por 14 anos, para jamais desonrar a promessa feita por seu pai.
Quais os paralelos que o senhor tece entre a civilização indiana e a europeia?
Nós apontamos para a maravilha daquilo a que chamamos civilização – nossas cidades esplêndidas, nossos monumentos, nossas pontes, nossos navios, nossas ferrovias, nossa luz elétrica, a música e o teatro. Nós pensamos que fizemos da vida na Terra algo próximo do perfeito; em alguns casos, tão perfeito que sentimos pena de deixá-la.
E quanto à indiana?
Há um provérbio indiano que diz: “Assim como um homem que ruma para outro vilarejo pode gozar de uma noite de descanso ao céu aberto, mas dá continuidade ao seu percurso no dia seguinte, assim pai, mãe, esposa e riquezas não são nada além de uma doce noite de descanso para nós – os homens sábios não se agarram a eles para sempre”.
Quem o senhor pensa que está correto?
Penso que a sabedoria reside no meio-termo entre esses dois extremos. Por mais que as nossas vidas seja curtas, não somos meros insetos de verão. Nós temos um passado, que pode ser analisado, e um futuro, pelo qual ansiamos – e é provável que os desafios que o nosso futuro nos apresenterá possam ser resolvidos com a sabedoria que adquirimos no passado.
Voltemos à frase que o senhor citou. Dela, compreendo que a nossa visão da vida é completamente diferente daquela dos antigos habitantes da Índia. Em que consistem tais diferenças?
A maneira com que os árias, que migraram para campos e vales ao longo do Ganges e do Indus, encaravam as suas vidas era completamente diferente da nossa. Eles a viam como uma espécie de feriado perpétuo, deliciosa enquanto dura mas que irá ter fim mais cedo ou mais tarde. Por que acumular riquezas? Por que construir palácios? Por que labutar? Depois de atender diariamente às pequenas necessidades do corpo, eles tinham o direito, ou mesmo o dever, de analisar o seu próprio interior, tendo como propósito elevar-se um pouco acima deles mesmos, na tentativa de conhecer um pouco mais a respeito do grande mistério a que nós chamamos a vida na Terra.
E quanto a nós?
Nós naturalmente consideramos tais noções de vida sonhadoras, irreais e pouco práticas, mas eles também não poderão olhar para as nossas concepções de existência e desprezá-las como irrequietas, obtusas, nada práticas porque envolvem um sacrifício da vida pelo bem da vida?
E quanto à religião? O que ela significava para os habitantes da Índia?
Para eles, a religião não era um interesse entre muitos. Ela era o interesse que absorvia todos os outros, contendo em si não somente a veneração ea reza, mas o que chamamos de filosofia, de moralidade, de governo e de lei. Tudo estava impregnado pela religião.
De acordo com o senhor, um dos principais legados dos habitantes da Índia Antiga foi o Rig-Veda. O senhor poderia nos falar um pouco a respeito dele?
No Rig-Veda, temos poemas compostos em metro elaborado, que contam-nos a respeito de deuses e de homens, de sacrifícios e de batalhas, das condições variáveis da natureza e das condições mutáveis da sociedade, dos deveres e prazeres, da filosofia e moralidade.
Um dos deuses mais citados no Rig-Veda consiste em Agni, o Fogo. Por quê?
Na veneração por Agni, podemos distinguir os traços de um período da história em que não somente os confortos mais essenciais, mas a própria vida dependia do conhecimento e da manipulação do fogo. O domínio do fogo representou um passo enorme na história da civilização antiga. Ele permitia que as pessoas cozinhassem a carne, em vez de comê-la crua; ele deu-lhes o poder de trabalhar durante a noite; e, em climas frios, impedia-as de congelar até a morte.
Para encerrar, Herr Müller, por que o senhor acha que devemos nos dar ao trabalho de investigar a filosofia, a religião e a literatura da Índia Antiga?
Creio que essa investigação é capaz de nos oferecer muitas lições tão importantes quanto as que aprendemos na escola de Homero e Virgílio, que são úteis quanto as de Spinoza e de Platão. Se acha que exagero, deixe-me citar o que foi dito por um dos maiores críticos filosóficos – e um homem, como sabemos, pouco dado a admirar o que quer que fosse – a respeito do Vedânta e mais especificamente dos Upanishads. Schopenhauer escreveu: “No mundo inteiro, não é estudo mais benéfico do que aquele dos Upanishads. Foi ele o grande consolo de minha vida, e será o consolo de minha morte”.