A melhor cena do clássico “Annie Hall”, de Woody Allen, é quando um sujeito, numa fila de cinema, começa a pontificar sobre o trabalho de Marshall McLuhan.
Num determinado momento, com o saco cheio de ouvir tanta baboseira, o personagem central, vivido por Allen, vai buscar o próprio McLuhan para explicar ao sabichão que ele estava errado.
“Você não entendeu nada”, diz McLuhan para seu atônito interlocutor, antes de desaparecer atrás das câmeras.
O que Sérgio Moro está fazendo com sua versão brasileira da Operação Mãos Limpas é parecido com o que fez o homem na fila de cinema com McLuhan. Moro, tudo indica, não tem a compreensão do que ocorreu na Itália.
Seria interessante que conversasse com o jornalista Gianni Barbacetto, especialista no assunto e autor do livro sobre a Mani Pulite que está sendo lançado no Brasil — cujo prefácio foi escrito por Moro.
Os dois jantaram e tiraram fotos para a posteridade, mas, aparentemente, trocaram impressões sobre a pizza napolitana e as escadarias de Roma, mais do que qualquer coisa.
A Mãos Limpas cumpriu quase 3 mil mandados de prisão, investigou 438 parlamentares e 872 empresários, acabou com cinco partidos — e desembocou no pilantra Silvio Berlusconi.
Barbacetto já tinha falado com a Zero Hora. Deu uma entrevista ao Valor, publicada nesta segunda, 24, que deveria ser lida e anotada por Sérgio Moro. São placas onde está escrito “Perigo! Não entre!”, virtualmente ignoradas.
Valor: A Mãos Limpas já foi classificada como um sucesso no curto prazo, mas um fracasso no longo prazo. O sr. concorda?
Gianni Barbacetto: Sim. Por um breve período, dois anos, a política italiana se livrou da corrupção. Cerca de 90% dos italianos se envolveram e apoiaram a operação, num clima de grande torcida. Aqui, no Brasil, vejo apoio de alguns que são favoráveis, mas outra parte que considera um golpe. Na Itália, não havia isso, nos primeiros anos. Depois, houve as consequências políticas.
Valor: Que consequências?
Barbacetto: No começo, os promotores fizeram a investigação e descobriram um sistema de corrupção perfeito, que incluía até partidos da oposição, como o Comunista. Com isso, os cidadãos deixaram de votar naqueles partidos. Depois, a partir de 1994, o sistema político se fecha e se recria.
Valor: Como?
Barbacetto: Começam a nascer novas legendas, como a Liga Norte, partido separatista, e sobretudo a Força Itália, de Berlusconi. Ele controlava as três redes de TV privadas e dominava a opinião pública. Em pouco tempo, ele se apresenta como defensor da Mãos Limpas e vence as eleições, dizendo-se um empreendedor, e não um político. Depois disso, ele reconstruiu o velho sistema, reciclando os antigos políticos. Berlusconi era o maior amigo do maior protagonista da Mãos Limpas, o ex-primeiro-ministro Bettino Craxi, seu grande protetor. Berlusconi conseguiu o monopólio da TV privada italiana graças a Craxi.
Valor: A população não fazia essa ligação?
Barbacetto: Metade sim, mas metade, que estava apaixonada por Berlusconi, não – o defendeu e votou nele por quase 20 anos.
Valor: A ascensão de Berlusconi marca a decadência da operação?
Barbacetto: O sistema antigo de corrupção, com os tesoureiros recolhendo e distribuindo as propinas para o partido, não existe mais. Mas se criou um novo sistema. São vários políticos e cada um se serve. É um self-service da corrupção. Por meio de correntes e grupos partidários.
(…)
Valor: A Lava-Jato ajudou a derrubar Dilma Rousseff e o PT, mas o novo governo, de Michel Temer, é apoiado por uma maioria parlamentar com políticos e partidos também envolvidos em esquemas de corrupção. Esse resultado é muito diferente ao da Itália, não?
Barbacetto: Sim, na Itália a população foi às urnas e como forma de protesto derrubou os grandes partidos em 1994. A mudança não ocorreu dentro do Parlamento, mas fora.
Valor: No Brasil, há grupos muito críticos à Lava-Jato. Isso aconteceu na Itália?
Barbacetto: Durante dois anos ninguém criticou quase nada. Os italianos amavam a Mãos Limpas, mas Berlusconi conseguiu convencer, pelo menos a metade da população, de que a operação foi manipulada e politizada. Ele e a direita italiana ainda dizem que a Mãos Limpas acabou com o antigo sistema, mas salvou o Partido Comunista, chamava os juízes de comunistas, de “toga vermelha”.
(…)
Valor: Qual é a visão da Lava-Jato na Itália?
Barbacetto: Olhando de fora, aparece só Lula. Na Itália, sabemos apenas que Lula é investigado. Não sabemos ninguém de outro partido.
Na semana passada, talvez tentando disfarçar a parcialidade patente da Lava Jato, Moro prendeu Eduardo Cunha numa operação que fugiu completamente ao protocolo.
A essa altura, depois de dois anos concentrados em apenas um partido e seu líder, fica complicado convencer que o objetivo não seja tirar Lula da cena.
Fica claro, a cada entrevista de Barbacetto, que Sérgio Moro não leu a obra para a qual escreveu o texto de apresentação. Agora: ainda que Barbacetto lhe dissesse que ele não entendeu nada, é duvidoso que o juiz o ouvisse, do alto de seu posto de salvador da pátria brasileira.