Sandro Gomes, escritor, professor e mestre em literatura brasileira pela UERJ, mandou o seguinte texto para o DCM:
Eis que agora nos deparamos com a notícia de que Bob Dylan ainda não se pronunciou sobre o prêmio Nobel que lhe foi oferecido, isso duas semanas depois do anúncio oficial da academia sueca. Comenta-se que com isso o cantor pode deixar de ganhar uma grana preta, algo em torno de 900 mil dólares, segundo tem aparecido na imprensa, apesar de não perder a condecoração, que, segundo a comissão do Nobel, não poder ser rejeitada. Mesmo levando-se em conta que se trata do sempre surpreendente Bob Dylan, é impossível não começar a pensar no que poderia estar por trás dessa aparente indiferença com relação a um prêmio que de um modo geral é encarado como a coroação de qualquer grande carreira.
É verdade que a comissão do Nobel já havia surpreendido o mundo das letras (com o perdão do trocadilho), ao conceder o tão festejado prêmio de literatura ao cantor e compositor. Ao fazer isso, de certa forma decidiu uma questão que é frequentemente debatida nos cursos de pós-graduação em literatura em todo o mundo: afinal, letra de música é literatura? Que o digam os estudantes que ao proporem uma pesquisa acadêmica sobre a obra de um letrista ou compositor precisam muitas vezes reservar uma parte do trabalho para convencer a cátedra de que textos escritos para acompanhar melodias são de fato obra literária. A comissão do Nobel então resolveu pôr um certo xeque-mate no debate e decretar que sim, letras de canções são literatura.
Não queria aqui ser mais um a entrar no turbilhão de polêmicas suscitado pela decisão da academia sueca. Mas pensando sobre a questão me veio à cabeça Garcia Lorca, o poeta da Andaluzia que muitos consideram o maior nome das letras espanholas depois de Cervantes. Ele morreu executado num paredão obscuro qualquer de sua cidade pela truculência do regime franquista por suas inclinações às ideias socialistas. A propaganda negativa do regime e a ausência, naquele início de século XX, de uma máquina de multiplicar informação como a que temos hoje trataram de igualar o grande poeta a qualquer um dos anônimos que tiveram o mesmo destino. No entanto, eis-nos aqui mais de um século depois conhecendo a beleza da sua terra andaluz e a sua forte influência da cultura cigana através de seus belos poemas. E o que dizer de um Van Gogh, de telas hoje valiosíssimas um dia abandonadas num galinheiro de sanatório?
Temos a sorte de algumas coisas às vezes misteriosas e inexplicáveis nos chegarem mesmo com a obscuridade em que gênios como esses produziram suas obras. Antes que pensem que com isso minimizo a obra de Dylan, digo que o incluiria sem pensar duas vezes em um panteão de grandes criadores da humanidade ao lado de Lorca e Van Gogh. Mas de toda essa questão me parece inevitável e necessário não perder de vista uma reflexão. O que traz até nós, muitas décadas depois das primeiras canções, a força e a genialidade de Bob Dylan, além, é claro, de seu talento inquestionável e da beleza de sua arte? Uma resposta possível: a indústria fonográfica. Sim, por mais genial que seja seu trabalho – e de fato o é – a obra de Dylan ou de qualquer outro grande compositor do festejado mercado da música dificilmente seria cogitada para um Nobel se não fosse a força de uma arte que pode ser levada aos quatro cantos do planeta através da máquina de publicidade que as grandes gravadoras, poderosas multinacionais lotadas no capitalismo globalizado, podem sustentar.
Alguém já soube de um grande nome da literatura universal que tenha tido das massas recepções calorosas e frenéticas como as que popstars do main-stream mundial recebem? Alguém já presenciou jovens histéricas chorando diante de um Garcia Márquez ou imaginou um Saramago participando de um programa de auditório e sendo recebido com uma chuva de roupas íntimas lançadas por fãs no auge da euforia? Esse, como obviamente sabemos, é um resultado de um público que é construído para o culto da personalidade de artistas, que muitas vezes – não é o caso de Dylan – se destacam mais que suas próprias obras. Isso é próprio de tipos de relação entre quem produz cultura e quem recebe no que chamamos de cultura de massa.
O que se espera da literatura – ou do que até agora entendíamos como tal – é de certo modo o oposto disso, ou seja, a serenidade de quem questiona o mundo e suas estruturas. Um mundo que, transformado segundo valores universais como a igualdade e a justiça, por exemplo, estaria dispensado da selvageria financeira dos grandes grupos econômicos e de máquinas de fabricar dinheiro como as empresas de publicidade que os servem. Não que Bob Dylan não proporcione a quem ouve suas estimulantes letras os recursos que levam a questionar o mundo, muito pelo contrário. Mas não se pode perder de vista o fato de que o faz como um brandido pela vara de condão das grandes multinacionais do entretenimento. E isso talvez já seja motivo suficiente para questionar a decisão da comissão do Nobel. Como gênio indiscutível que é, quem sabe não é justamente essa reflexão que Dylan estaria sugerindo aos admiradores de sua obra ao manter a atitude de não responder aos e-mails da academia sueca? Minha formação um tanto rebelde, forjada também com as palavras que Dylan soprou ao vento, me autoriza a cogitar essa possibilidade.
Bob Dylan é sem dúvida um dos grandes mestres do nosso tempo. Todo jovem merece ter contato com a força renovadora e inquieta – sem perder a beleza – de seus textos, cantados com a sua voz fanhosa e sedutora e com o seu estilo único e inconfundível. Mas o Dylan Nobel de literatura é um eco do avanço da cultura do capital que ganha vorazmente o mundo e deixa seus tentáculos no Brasil pós-impeachment. É fruto da mesma mentalidade dominadora que faz sistemas universitários do mundo todo questionarem a necessidade da existência de cursos de humanas, pleiteando assim que deixem de ser mantidos nos sistemas educacionais estatais. Enfim, o Nobel talvez represente tudo o que Bob Dylan não queria que sua obra fosse.
Pra finalizar, vale lembrar a contribuição brasileira que muitos anos antes da polêmica atual foi trazida por um de nossos grandes gênios, que também poderia ser lembrado como um Nobel, se escrevesse na língua de Shakespeare ao invés de fazê-lo na de Camões. Ele compôs e musicou um belo poema-reflexão que se iniciava por: “Quando Bob Dylan se tornou cristão…”. Você certamente sabe de quem estou falando e talvez tenha ido correndo reler a letra nesses tempos de Dylan Nobel de literatura.