POR LINO BOCCHINI, em seu Facebook
Conheci a Brasil nesta terça-feira na homenagem a Luís Carlos Ruas, o Índio, trabalhador que há 20 anos mantinha uma barraquinha em frente a estação Pedro II do metrô e foi assassinado a murros e chutes na cara por dois rapazes na noite do ultimo dia 25 de dezembro. Conversei um tanto com ela e resolvi compartilhar.
Brasil conta que naquela noite ela e sua amiga, a travesti Pandora, começaram a apanhar dos dois, quando Índio interveio: “Parem de bater na Brasil! Parem de bater na Brasil!’, gritou ele e foi tentar apartar”. A dupla de agressores partiu pra cima. As duas, magrinhas, correram e escaparam. Índio ficou para trás, tropeçou antes das catracas e o Brasil inteiro assistiu ao vídeo do desfecho. Foi tão brutal que o velório – também nesta terça-feira, em Diadema – foi de caixão fechado.
Mas voltemos à Brasil. Quando o ato começava a dispersar, ela seguia aos prantos, olhando a pequena homenagem no chão da estação (na foto deste post, Brasil, índio e a homenagem).
Inconsolável, ajoelhava-se, falava sozinha, olhava as flores, a foto do amigo no jornal e chorava desesperadamente, em pé ou de joelhos. Haviam por ali cerca de 50 pessoas entre militantes LGBTs, anarquistas, membros da pastoral do Povo da Rua, alguns jornalistas e moradores da região.
De repente, se levantou e foi saindo sozinha.
(Para quem não conhece, o metrô Pedro II fica em uma área do centro de São Paulo degradada e abandonada pelo poder público, e a crise econômica agravou a situação. A arquitetura da estação a transforma em uma estufa, em especial a sua entrada. Hoje a máxima na cidade foi de 33 graus, e ali estava bem mais.)
Ao vê-la caminhando solitária rumo àquele deserto de desolação e calor da avenida do Estado, saí correndo e gritei: “Brasil, espere!”. Parou e começamos a falar. No começo foi complicado. Ela não conseguia controlar o choro e, mesmo depois, mais calma, tinha dificuldades para se expressar claramente. Brasil vive na rua há anos com nenhum ou pouquíssimo apoio e chorava ali a perda de justamente um dos poucos que a ajudavam.
“Como fizeram isso, como fizeram?…”, repetia. “Bateram em mim, bateram na Pandora, dói tudo”, e me mostrava hematomas. “E onde está a Pandora?”, perguntei. “Não sei, não vi desde aquela noite”. Insisti: “Mas sabe onde ela está, se está bem, se precisa de algo, se está bem de saúde?…”. Ela só chorou de novo e falou: “Não sei de nada…”.
“E para onde você vai agora, Brasil?”.
“Eu moro ali atrás daquelas caixas d’água, vou pra lá, não quero mais ficar aqui, tô com medo”.
“Mas alguém te procurou, alguém te ofereceu alguma ajuda, algum apoio?”.
“Só o DHPP me procurou…”.
“Você tem algum dinheiro, Brasil?”, perguntei.
“Nunca tenho, tô sem nada…”. Abri a carteira e dei 100 reais na mão dela.
Após ela me explicar – numa boa e sem que eu perguntasse – que fala seu nome “usando `A` porque é bicha”, chega um amigo na conversa. Também morador da região, ele comenta: “Covardia demais o que fizeram com o Índio. Tinha idade, e nem brigar sabia”. Seu colega ficou pouco por ali, bebericando algo alcoólico colorido em uma garrafa plástica e se vai, fazendo um discreto sinal para mim girando o dedo ao redor do ouvido e balançando a cabeça triste como indicando que Brasil estivesse “louca”.
Seguimos a conversa, e com o tempo ela parecia estar gostando de ter alguém para desabafar. Aproveitei para satisfazer uma curiosidade: “De onde veio o apelido Brasil?”. Ela me olha séria e responde: “Você não reparou? Pela semelhança.” Enquanto eu tentava entender, ela tirou a tiara, ajeitou os cabelos, me olhou nos olhos e falou, sorrindo: “Pela semelhança com o David Brazil”.
O assunto foi morrendo, eu aflito querendo ajudar mais sem saber como. Quase ao final, pergunto: “Você vai voltar aqui na estação?”. E ela: “Não, nunca mais. Se quiser me achar vai lá naquelas caixas d’água”, e de novo aponta algum local ao longe que, depois de 40 minutos debaixo do sol a pino, tive dificuldades em identificar exatamente aonde era.
Na hora de nos separarmos, dei um beijo em seu rosto e um abraço. Emocionado, a apertei contra meu peito. Ela começou a gemer: “Pára, pára! Não aperta, tá doendo!”. Pedi desculpas sem jeito, tinha esquecido da surra recente. Ela acaba se envergonhando pela primeira vez na conversa: “Horrível isso de não poder nem abraçar, né?”. E se vai.