Publicado no JornalGGN.
POR ALDO FORNAZIERI
O prefeito Doria é um político esperto, inteligente, flexível, tem método, tem estratégia e sabe o que quer e como quer chegar. Ao contrário da maioria esmagadora dos políticos brasileiros sabe jogar com a lógica do poder e usa os instrumentos de psicologia nas suas relações pessoais e com a sociedade. Por tudo isso, Doria é um político perigoso pelo potencial que ele tem de alcançar distâncias consideráveis no seu projeto de poder. Nada disso seria recriminável se Doria fosse um político autêntico, um democrata compromissado. Mas o fato é que ele não o é e sequer é um liberal, algo que aqui no Brasil nunca existiu.
Doria, como se sabe, reza pelos piores manuais da enganação, da manipulação e do charlatanismo (Robert Greene). A cartilha que o prefeito segue, cita e admira é a cartilha da vigarice. Por isso, ele é perigoso. Quer o poder pelo poder, pelo brilho que o poder oferece e pelas suas benesses, evidentemente. A personalidade de Doria é a condensação pura da vaidade. Para usar a linguagem weberiana, em Doria não há causa a realizar, não há propósito, não há senso de proporção, não há distanciamento crítico e nem existem as mediações necessárias entre o essencial e o aparente. Tudo é jogo de aparência, dissimulação, ardil.
O manual de Doria é o do antimaquiavelismo. Não se trata do Príncipe virtuoso e prudente que, pela sua coragem e dedicação à causa, age para governar bem os governados, quer realizar as grandes obras físicas e morais, quer dar o exemplo para construir a grandeza da cidade e alcançar a glória nos tempos. Doria é o antípoda de Moisés, de Ciro, de Teseu e de Rômulo, heróis de Maquiavel. O prefeito faz um tipo mais próximo de um Agátocles o Siciliano e de um Oliverotto de Fermo. Parafraseando Maquiavel, não se pode reputar como virtude a manipulação, a propaganda enganosa, a mentira e o charlatanismo. Tal modo de agir pode levar à conquista do poder, mas não à glória.
A compulsão autoritária de Doria
Seria um erro, contudo, reduzir Doria aos tipos consagrados da cartilha pela qual reza. Pela sua inteligência, astúcia e ambição, ele é bem mais perigoso do que os escroques que querem simplesmente se dar bem enganando os outros. Como prefeito, Doria age pelo descomedimento, pela destemperança e pela provocação. Tudo indica que é um jogo calculado, mas é um jogo que pode provocar consequências nefastas.
Doria age como se fosse dono da cidade. Foi assim com as pichações e com o grafite. Cercado de seguranças, parte para cima dos seus críticos em vários eventos. Quer expulsá-los para Curitiba. Semeia os ventos da fúria persecutória que é secundada pelos seus camisas amarelas, uma espécie de Camisas Pretas (Mussolini) do facebook e das redes sociais que o mitificam e pregam o ódio e a violência como meios de imposição política. Não respeita nem FHC e menos ainda Lula. Entregou o primeiro para que fosse destroçado pela milícia verde-amarela. Ataca Lula com violência verbal diária incitando a violência física dos seus seguidores.
A violência verbal e os enfrentamentos que Doria promove não se coadunam com o cargo de prefeito. Pelo contrário, retiram-lhe a dignidade e a autoridade que o cargo de um governante sempre deve ter. Doria vem se transformando, de forma recorrente, em um provocador, um arruaceiro político. Calculadamente ou não, o fato é que o prefeito vai assumindo dimensões de um desequilibrado, seja pela violência verbal que pratica e pela violência física que incita, seja pela espalhafatosa exposição propagandística a que se expõe até aos exageros da saciedade. Um governante não pode apresentar-se como chefe de uma facção. Deve ser o ponto de unidade dos governados, conduzindo-se pelo equilíbrio e pela prudência.
Ao semear tantos ventos poderá, por um lado, colher dolorosas tormentas e, por outro, o espalhafato poderá identificá-lo mais com um ator circense do que com um prefeito realmente dedicado a buscar soluções aos duros problemas de São Paulo. A Cidade Linda, até agora, é uma propaganda enganosa. Nos últimos anos a cidade nunca esteve tão esburacada como está agora e nunca existiram tantos semáforos queimados com tanto tempo para serem concertados. Seria risível se não fosse trágico sugerir que o Corujão solucionou os problemas de saúde da cidade, que passam por uma de suas piores crises. Por outro lado, cultura e programas sociais sofrem o mesmo desmantelamento que o governo golpista está promovendo no plano nacional.
Se os riscos políticos e o mal que Doria representa se restringissem à cidade de São Paulo, o desassossego com a sua figura seria circunscrito e até suportável. O problema é que as circunstâncias e a Deusa Fortuna parece que se enamoraram do alcaide paulistano: podem torná-lo candidato a presidente da República, mesmo que ele não queira – embora tenha feito o jogo para querer, ao menos até agora. Os imponderáveis da crise política e da Lava Jato podem destruir as pretensões presidenciais dos outros líderes tucanos.
Um novo tipo de líder de direita
Quando se diz que Doria representa uma potência do mal não se trata de um mero artifício retórico. Ocorre que, de fato, ele é um novo tipo de líder político, mas que tem fortes reminiscências nos líderes autoritários do passado. O prefeito se dirige diretamente às massas, na rua e nas redes sociais, e busca construir uma identidade com elas, dissolvendo as mediações necessárias que as instituições democráticas e representativas exigem. Prescinde até mesmo do PSDB. Essa identidade, à medida que se constrói com os recursos da violência verbal e do ódio, pode prescindir também das mediações da lei, da ordem e dos outros recursos do sistema político e tornar-se imposição de força e de violência física numa conjuntura que caminha cada vez mais para a polarização.
A novidade singular que Doria representa surge num momento que lhe foi muito oportuno e que ele soube aproveitar. O sistema político brasileiro está destroçado, cheio de escombros e de cadáveres políticos. A crise de legitimidade que devasta instituições, partidos e líderes é imensa. A sociedade vê corruptos por todos os lados. Num ambiente como este, nada mais oportuno do que apresentar-se como antipolítico, como empresário rico, honesto e empreendedor, mesmo que parte dessa riqueza tenha sido amealhada com recursos do Estado e com a parvoíce de outros empresários.
Nesse cenário de devastação, onde políticos e partidos se caçaram, brigaram, se denunciaram e se mataram, o mentor de Doria recomenda que a conduta mais adequada seja a da hiena ou a do abutre. Ou seja: os outros animais (políticos) trabalharam para que o cenário propício a Doria (e no limite, a Bolsonaro), surgisse sem que ele fizesse nenhum esforço. Ele simplesmente se aproveitará deste ambiente putrefato proporcionado pelos outros.
Qual é o principal problema de Doria? Como um falso brilhante, ele não é nenhum líder autêntico, entranhado e enraizado na vida e nas lutas sociais do povo. Surgiu repentinamente, quer o poder pelo poder e se promove pela propaganda. As massas sentem um fascínio por ele, pela sua inteligência, pela sua esperteza. Consegue enganar ao mesmo tempo a elite branca dos Jardins e a periferia. Quer promover uma aliança entre ambas. A propaganda, contudo, não resolve os problemas da vida. Sem substância real e conteúdo político e social, a liderança de Doria pode se esfumar de forma tão repentina quanto a rapidez do seu sucesso.
Mas existe um perigo em tudo isso. Doria não é um Collor, um Aécio ou um Serra. É bem mais astuto e preparado do que todos eles. Percebeu que a substância do seu sucesso não está nele, mas fora dele, na sociedade cindida, desencantada, desiludida. Acena para essa sociedade com a possibilidade do sucesso, pois ele se apresenta como a encarnação do sucesso. Numa sociedade que precisa desesperadamente de esperança, Doria poderá se tornar a fúria de sua busca arrastando massas atrás de si, mesmo que isto implique graus variados de violência e uma destruição ainda maior da democracia e dos direitos.