Ainda estou tomada pela sutileza de Laerte-se, o documentário sobre a cartunista Laerte Coutinho, realizado por Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva, disponível na Netflix. Essa sutileza toma conta do espectador porque toma conta do filme, do início ao fim.
Do olhar da câmera – um olhar intimista e detalhista, mas respeitoso – ao comportamento nada invasivo de Eliane Brum, tudo no filme aponta para uma atmosfera de naturalidade.
A sensibilidade das realizadoras, aliás, é notória pelo próprio conceito do filme: a câmera não pretende ser posta como mera observadora da “verdade”: ela interage com o filme, o que é no mínimo honesto, porque a câmera é necessariamente parte do filme. A presença da câmera interfere na realidade, isto é um fato, e negá-lo é, no mínimo, um indício de desonestidade ou demasiada pretensão do diretor.
Em vez de colocar-se como mera documentadora de uma verdade absoluta, Eliane Brum pisa com cuidado no mundo de Laerte: interage, pergunta, direciona, aparece.
Quando a realizadora de um documentário aparece em vez de se esconder atrás de uma câmera imparcial e quase invisível, está dizendo, com honestidade e sem palavras, que aquele filme não pretende documentar a verdade: pretende criar um olhar.
O cinema existe, penso eu, para criar olhares.
Para além da estética, o filme é um soco elegante nas masculinidades tóxicas, na transfobia, na insensibilidade do feminismo radical para com as mulheres trans e no próprio movimento transgênero.
Laerte chega a contar, notadamente à vontade na presença de Eliane Brum, a respeito de seu incômodo com certos posicionamentos fascistas dentro do movimento trans, como por exemplo a escolha pela não mudança de sexo vista como fator de exclusão.
“É como se fosse um requisito para ser travesti”, constata Laerte, bem-resolvida e sem uma gota de ressentimento, ao dizer que não pretende fazer a cirurgia de mudança de sexo e que não precisa disso pra sentir-se mulher e feliz.
Além da questão trans, central no filme, diversos outros temas delicados são tocados, sem nenhum peso desnecessário e apelativo: a morte do filho de Laerte, suas relações familiares, corpo, sexualidade, nudez, política.
O olhar sensível de Eliane Brum e a figura forte de Laerte não resultaram em um filme que levanta a bandeira trans – ou que levanta bandeira alguma: resultaram em um filme sobre vida, sobre questões humanas urgentes, especialmente ligadas ao corpo e às liberdades individuais.
Laerte, que, sem aparente falsa modéstia, não se considera uma mulher corajosa, teve coragem suficiente para abrir o seu mundo para que dele nascesse um filme lindo e necessário.
Vida longa a Laerte e um beijo pras travestis.