Publicado no Justificando.
POR RENAN QUINALHA, doutor em Relações Internacionais e Mestre em Sociologia do Direito pela USP. Advogado e militante de direitos humanos.
Entendo e respeito a posição defendidas por diversas pessoas no interior do campo das esquerdas no sentido de que seria inconstitucional a realização de eleições diretas, ainda que eu discorde juridicamente deste argumento se houver a aprovação de uma PEC como a proposta pelo deputado Miro Teixeira.
No entanto, fico chocado ao ler gente progressista afirmando que as diretas seriam “um golpe” e que seria “um casuísmo igual” àquele do impeachment. Colocar lado a lado essas duas situações é um absurdo sem tamanho que só uma leitura formalista e liberal bastante despolitizada é capaz de reproduzir.
Primeiro, porque o governo Dilma era um governo legitimamente eleito e “golpe casuísta” teria sido chamar eleições novamente antes de ela terminar o mandato, como alguns defenderam, equivocadamente a meu ver, como alternativa ao impeachment.
Segundo, porque claro está que o impeachment não foi amparado em crime de responsabilidade algum e foi, na verdade, fruto de uma articulação da casta política mais corrupta com setores do empresariado e do sistema de justiça, agindo todos com o objetivo de “estancar a sangria”. Na boa, quem ainda tem dúvida disso vive certamente em outro planeta.
Terceiro, chamar eleições gerais para escolha de um governante até as proximas eleições em 2018, com respaldo de uma emenda constitucional que autorize isso, é perfeitamente possível. Não se trata de cláusula pétrea, não altera o calendário eleitoral regular e não se aplica, a meu ver, o princípio da anterioridade aqui, pois não se trata de “lei” que altere o “processo eleitoral” (art. 16 da CF).
A única saída para o impasse em que nos encontramos é não reduzir nosso horizonte ao Fora Temer. Precisamos fraturar a ordem flagrantemente antidemocrática gestada com o golpe em 2016 e expor a distância cada vez maior entre este sistema político e a nossa sociedade. A reivindicação das Diretas Já, conforme a Constituição, tem exatamente esse potencial. Ela nos diferencia do oportunismo das direitas, da Rede Globo e da Veja, que também encamparam o Fora Temer para emplacar uma candidatura nas eleições indiretas mais forte e que faça as reformas deixando menos rastros de “sujeiras”.
Trata-se, agora, de barrar as reformas conservadoras e de escancarar e politizar essas diferenças por meio da palavra de ordem das “Diretas Já”. Sabemos que não será fácil e que esse caminho só poderá ser trilhado se, de fato, houver uma mobilização nas ruas semelhante ao que foi junho de 2013, com a dificuldade de não haver mais o combustível do antipetismo que levou as classes médias para as ruas.
Em suma, não há casuísmo, ilegalidade, golpe ou exceção alguma em radicalizar a concertação política que está em curso para blindar Temer ou então para neutralizar as pressões populares em uma eleição indireta feita por esse Congresso sem qualquer legitimidade. Evocar o poder constituinte e a soberania popular é a única saída efetivamente democrática e que restaura a dignidade do Estado de Direito no Brasil. Igualar essa reivindicação ao que foi a violência institucional do impeachment é de uma má-fé e de uma miopia política inaceitáveis.
Devemos aqui lembrar de Walter Benjamin: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade”. Essa história está a ser escrita e não será um formalismo descontextualista e despolitizado que nos fará romper o ciclo da exceção permanente.