Publicado no Conjur.
POR MARCO AURÉLIO DE CARVALHO, advogado.
Em tempos de paixões acirradas, de sentimentos à flor da pele e de convicções construídas pelos fenômenos da pós-verdade, vale recordar Doze homens e uma sentença, escrita originalmente para o teatro, e posteriormente transformada em filme. A trama é ambientada em torno do julgamento de um jovem acusado de ter matado o próprio pai. Se condenado, receberá sentença de morte.
Doze jurados se reúnem para decidir o destino do rapaz. Há uma orientação para que o réu somente seja condenado por unanimidade. Um debate é iniciado. Cada jurado expõe convicções e interpretações dos fatos. Ao final, onze dos jurados decidem pela condenação.
Um jurado duvida da culpa do jovem e tenta convencer o grupo. A tentativa de convencimento é baseada em questionamentos em torno de detalhes relevantes: qual teria sido o horário e o tempo de passagem de um trem sobre a cena do crime? Seria possível a audição clara de uma frase pronunciada em meio aos ruídos causados pela movimentação desse mesmo comboio na estrada de ferro? Qual o modelo da faca utilizada? Em qual loja teria sido adquirida a arma?
No eletrizante debate, a tentativa de reviravolta é encabeçada apenas por um réu, mas a subjetividade de todos os jurados é desnudada, ora de forma incisiva, ora sutilmente. A peça lança o espectador para a grandiosa responsabilidade e o cuidado extremo em condenar uma pessoa por algo que não fez, ou absolvê-la, neste caso, penalizando indiretamente a sociedade.
Sem spoiler a respeito do final, a lição deixada é contundente: justiça e injustiça caminham em uma fronteira tênue. Todo cuidado é pouco.
Nestes tempos de judicialização generalizada e de protagonismo judicial, começam a soar alertas de entidades representativas da sociedade diante de condutas que, além da destruição de direitos individuais, configuram desrespeito a um conjunto de leis destinadas a proteção de atividades profissionais de alto sentido social.
Sob a crença de que o país se salvará por meio de uma cruzada de moralização dos costumes políticos, as operações da força-tarefa de Curitiba ocupam a agenda nacional desde 2014. Mobilizam esperanças, paixões, acumulam inequívocos acertos, mas também colecionam tropeços que ameaçam o Estado de Direito.
Recentemente, vieram à público vídeos e áudios vinculados ao exercício do jornalismo e à advocacia. Como se sabe, a deontologia de ambas profissões fundamenta-se no serviço à sociedade e na garantia de direitos individuais e coletivos.
Pasmem, até mesmo um ministro da Suprema Corte teve suas conversas “captadas” e expostas sem qualquer motivo que o justificasse. E em rede nacional.
No caso da imprensa, o jornalista tem assegurado o sigilo de suas fontes como suporte para captar e difundir informações de interesse público. Já os advogados exercem a atividade como instrumento e garantia do direito de ampla defesa — prerrogativa também assegurada pelo texto constitucional.
Inseridos erroneamente no turbilhão de atos criminosos sem que as autoridades atentassem para a violação de suas garantias profissionais, jornalistas e advogados foram expostos indevidamente no espetáculo das denúncias.
Os fatos são graves. Existem interceptações legalmente autorizadas para vigiar “pessoas alvo” das investigações. Há, de fato, diálogos que expõem as vísceras de um sistema político cujos sinais vitais estão à beira da falência, o que, vale ressaltar, representa claramente um grande perigo à saúde da democracia.
Mas esses mesmos “alvos” receberam, naturalmente, diversas ligações telefônicas – do círculo familiar e afetivo, do relacionamento profissional, etc. – cujo conteúdo não oferece relevância para qualquer inquérito. Desta forma, tanto jornalistas como advogados estão sendo “atropelados” com a divulgação de conversas que não oferecem, reitera-se, quaisquer subsídios para os processos em curso, mas, isto sim, constrangimentos e exposição desnecessários.
Vale o registro. A própria Normativa de Interceptações Telefônicas, a lei 9.296, de 24 de julho de 1996, em seu artigo 9, estabelece que a gravação que não interessar à prova será inutilizada.
Para entender atribuições e papéis, cabe ao juiz, portanto, a obrigação legal de descartar o que não diz respeito ao objeto das investigações e aos respectivos inquéritos. Em momentos como o que vivemos, esta obrigação ganha ainda mais relevo e importância.
Ao liberar escutas que não revelam atos ou fatos criminosos, mas falas e diálogos nem sempre relacionados aos acontecimentos investigados, as autoridades cometem erro que pode ter implicações na violação de outras importantes garantias e direitos (individuais ou coletivos).
No caso dos jornalistas, configuram-se violações ao sigilo da fonte, garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal, que reza: é “assegurado a todos o acesso a informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
A própria Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou, em nota (24 de maio de 2017) que “os casos de desrespeito à Constituição têm aumentado nos últimos anos”.
É indiscutível que o combate aos desvios da política deva ser exemplar. Mas sob o imperativo do consenso social em torno da indispensável moralização dos costumes políticos, não se deve destruir direitos tão caros à sociedade.
A ameaça aos jornalistas produz consequências que vão além do ambiente onde os profissionais atuam. Trata-se de entender que todos nós correremos risco a partir da derrubada de premissas e prerrogativas inscritas na jovem e já tão “machucada” Constituição Federal, cujo alcance consiste em proteger toda a sociedade.
Como ensina Doze homens e uma sentença, fazer justiça é estar próximo de cometer injustiças. Todo cuidado é pouco.